sexta-feira, 30 de julho de 2021

Restaurante Aubette. A propósito de uma Ementa

Comecei a organizar um lote de ementas que pertenceram ao Prof. Ricardo Jorge e sobre as quais voltarei a falar. Debrucei-me sobre a primeira, uma ementa de grandes dimensões, do «Congrès de la Fédération Internationale de la Presse Gastronomique», que teve lugar entre 12 e 17 de Maio de 1969, na Alsácia. Procurei informar-me sobre esta organização mas as minhas buscas foram infrutíferas.
Resolvi então pesquisar o restaurante de nome Aubette, em Estrasburgo, onde teve lugar o jantar de encerramento. A avaliar pela ementa, devia ser de grande qualidade. Não foi fácil porque este já não existe e pelo contrário surgiram posteriormente, com o mesmo nome, por razões óbvias como veremos, outros locais de restauração.
A descoberta que se seguiu foi extremamente interessante e completamente fora do meu conhecimento. Não conheço Estrasburgo e toda a informação foi recolhida da net. O nome de Aubette foi dado a um grande edifício militar projectado pelo arquitecto Jacques-François Blondel e construído entre 1764 et 1767. Situa-se na Praça Kléber e fazia parte de um plano mais amplo para modernizar a cidade. Transformado posteriormente em museu sofreu em 1870 um incêndio que apenas deixou de pé as paredes. Foi restaurado em 1874 e destinado a outras actividades. Em 1922 os irmãos Paulo e André Horn, que tinham a concessão da ala direita do edifício, decidiram aí instalar um complexo que incluía restaurante e outras actividades lúdicas. Para tal pede a colaboração do projecto e decoração a três elementos da escola De Stijl, de que também fazia parte, como fundador, Piet Mondrian (1872–1944). Os elemento em causa eram o arquitecto Theo Van -Doesburg (1883-1931), Sophie Taeuber-Arp (1889-1943) e Hans Jean Arp (1886-1966). O movimento também designado por neoplasticismo, foi um movimento holandês, iniciado em 1917, que se caracterizava por uma nova concepção do espaço e do uso da cor. À utilização de formas bidimensionais e geométricas, assimétricas, associava-se uma restrição no uso das cores, em que apenas eram utilizado o amarelo, o azul e o vermelho, a que se juntavam o preto e o branco. Este principio foi aplicado à pintura e ao design e posteriormente à arquitectura.
Foram estes conceitos que foram aplicados na decoração de Aubette, obra de vanguarda realizada entre 1925 e 1928. O projecto de grande ambição distribuía-se por quatro pisos. Na cave situavam-se os vestiários, as casas de banho, as cabines telefónicas, um bar americano e uma cave para dança com cabaret. No rés-do-chão situava-se um vestíbulo, um café-cervejaria, um café-restaurante, uma sala de chá e um bar. Por uma grande escada subia-se para um piso intermédio onde ficavam as casas de banho, os vestiários e uma sala de bilhar. Era também aí que se situavam as cozinhas, a sala frigorífica e a copa que dava para o pátio através de um elevador de serviço. No primeiro piso existia uma grande sala que servia ao mesmo tempo de sala de dança e cinema, ligada por um hall à pequena sala de festas. A propósito do Café Aubette Van Doesburg disse: «A pintura separada da construção arquitectónica não tem o direito de existir». O complexo, inaugurado com grande fausto em 28 de Fevereiro de 1928, nunca foi bem aceite pela população que o considerava demasiado moderno. Quando em 1938 os irmãos Horn deixaram de ser gerentes o projecto foi alterado para formas mais consensuais. É provável que o Restaurante Aubette que eu procurava se situasse num desses locais alterados. O espaço foi considerado perdido mas nos anos oitenta foram realizadas obras que revelaram que o local podia ser reabilitado. Os trabalhos de restauro começaram em 1985 e em Junho de 2006 estavam concluídos. Aquela que foi considerada por Hans Houg, antigo director dos Museus de Estrasburgo, talvez com algum exagero, «a capela Sixtina da arte abstracta», pode agora ser visitada.
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Nota: Este poste foi publicado em 2018. Hoje ao actualizar as etiquetas mudou de lugar e foi reeditado nesta data.
 

domingo, 25 de julho de 2021

Tábuas do Tempo …

O nome completo do folheto é Tábuas do tempo necessário para digerir as comidas usuais, numa referência ao tempo de digestão dos vários alimentos.

Publicado pelo Instituto Pasteur de Lisboa (IPL), destinava-se, como se afirma na contra-capa, aos que “queriam regular racionalmente as suas refeições”.

O IPL foi fundado em 1895 por Virgínio Leitão Vieira dos Santos (1873-1946) ocupando inicialmente um modesto espaço na Praça Luís de Camões. Mudou, em 1903, para a Rua Nova do Almada onde se manteve até 1958. Nesse ano foram inauguradas as novas e modernas instalações do IPL na Avenida Marechal Gomes da Costa, num edifício construído para o efeito projectado pelo arquitecto Carlos Manuel de Oliveira Ramos e que lhe valeria o Prémio Valmor.

Numa fase inicial a empresa dedicou-se à importação de soros e vacinas, produzidas pelo Instituto Pasteur de Paris. Mas embora não datado, este folheto renete-nos para o período intermédio, na Rua Nova do Almada, já com um grande desenvolvimento e laboratórios em acção, com produção própria.

Num artigo dedicado a esta empresa, publicado na revista Panorama em Setembro de 1941, podia ler-se: “Merece, finalmente, destacada referência a Secção de propaganda que tem chamado a si a colaboração de alguns dos melhores artistas gráficos, decoradores e fotógrafos do País, para os arranjos dos interiores e das montras, a realização dos cartazes e, também, das maquetes das embalagens, cujo bom gosto contribuiu para gue centenas de milhares de portugueses e estrangeiros prefiram as especialidades desta importante e modelar organização industrial.”

É extensa a citação mas vem a propósito salientar o grafismo das embalagens de medicamentos produzidos e as campanhas publicitárias destinadas a pessoal da área da saúde e à população em geral.

Como podemos constatar no final do folheto está presente a rubrica de Fred Kaldolfer (1903-1968), pintor e importante artista gráfico que a partir de 1927, passa a trabalhar sob encomenda para o Instituto Pasteur.

Cada uma das folhas do folheto encontra-se quase totalmente ocupada por uma imagem alusiva, em que ao texto se adiciona o tempo necessário para realizar a digestão daquele alimento.

Mas se a beleza das imagens nos toca, chama-nos à atenção como na base deste conceito terá estado alguma obra estrangeira porque alguns dos alimentos referidos não eram à data consumidos ou, pelo menos, não estavam divulgados em Portugal.

Vejamos os casos das maçãs azedas cruas; da couve crua; do leite-creme no forno; das ostras cruas ou estufadas; dos ovos quentes; da cenoura branca ou do salmão salgado cozido. Nada que perturbe a compreensão do texto, ou a apreciação das imagens. Não serve é como base para a História da Alimentação em Portugal.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Picasso minha alma gémea


Faço minhas as suas palavras. Nunca uma frase me fez sentir tão identificada.

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Nota: Cartazes publicitários espalhados por Lisboa a propósito da EMUA – Ephemeral Museum of Urban Art, que teve início no dia 5 de Maio e estará  até 25 de Julho na Lx Factory, em Lisboa.

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Memórias esquecidas: o duplicador

Ao consultar um jornal antigo, um suplemento do Diário de Lisboa de 1963, deparei-me com uma notícia espantosa: a explicação do que era um duplicador. 
Hoje em dia não seria necessário um artigo para explicar como se faz uma fotocópia, de tal modo o processo se encontra divulgado.
Lembrei-me então dos anos 60 quando eu estava nos últimos anos do Liceu. Eu era uma boa aluna a História, mas a maioria da turma não conseguia ler os livros compactos de “História do Matoso”. O autor destes livros era António Gonçalves Matoso (1895-1975), pai do historiador José Matoso. Foi professor liceal e autor de manuais de História para o ensino liceal, desde 1938. 
O seu Compêndio de História de Portugal, e o Compêndio de História Universal, acompanharam gerações de estudantes. Extremamente bem-feitos, do ponto de vista histórico, não tinham em conta a população a que se destinavam e eram detestados por todos e … simplesmente não eram lidos. Em conclusão as reprovações eram imensas. 
 
O meu pai havia-me ensinado a importância de resumir os textos e foi o que eu fiz a História. Escrevi uma pequena História, baseada no compêndio de leitura obrigatória do Matoso. Os meus colegas de turma quiseram ter acesso a ele, mas então não havia ainda fotocópias.  Acontece que num dos empregos do meu pai existia uma máquina duplicadora. Lembro-me que tinha uma tina com um líquido de onde saía uma folha idêntica ao original, mais grossa e brilhante. Fiz umas cópias destinadas a venda aos meus colegas. Distribui-as pelos interessados que deviam pagar-me uma insignificância, para compensar o preço das folhas. Mas isso nunca aconteceu. 
Just in Time, or a Short History of Production (2010), instalação do artista Xavier Antin.Cadeia de impressoras de diferentes épocas: magenta (Stencil duplicator, 1880), cyan (Spirit duplicator, 1923), preto (Laser printer, 1969) e amarelo (Inkjet printer, 1976).

Foi o meu primeiro negócio e logo ali devia ter percebido que não tinha jeito para ganhar dinheiro. Ao longo da vida viria a confirmar isso. 

Mas esta história não serve para me queixar, mas para descrever uma memória perdida do tempo em que surgiram as primeiras máquinas duplicadoras. Um objecto que já quase ninguém recorda. Como a modernidade é efémera.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Uma ementa de origem improvável

 

Agradeço ao meu amigo Pedro a oferta desta ementa que me atraiu logo pelo grafismo, mas que me surpreendeu pela proveniência.

Não se pode saber como chegou a Lisboa esta ementa de 1944, desenhada à mão, desdobrável (tipo pop-up), feita pacientemente em Moçambique na Missão da Imaculada Conceição de Amatongas.

Ementa montada
Pintada com aguarela sobre cartolina verde, apresenta no plano de fundo a ementa (já lá iremos), anunciada por dois pretinhos, vestidos à ocidental, o menino com livros no braço e a menina com um estandarte. Ambos têm ao pescoço um fio com uma medalha que se adivinha religiosa. Seriam, como supomos, alunos da escola da Missão. No plano frontal um galeão recortado tem numa das suas velas a expressão “Bem Vindo” e a data numa vela superior.

Falemos primeiro nesta missão, inaugurada em 1914, e dirigida por padres franciscanos. Nela se ministrou o ensino primário, para além de vários ofícios. Mas especial relevância teve o ensino agrícola que foi subsidiado pela Companhia de Moçambique. De tal modo que nos anos 20 foi chamada Escola agrícola de Amatongas. Em 1930 deu origem à missão de vila Pery.

Casa da Missão de Amatongas.ANTT
Foi lá que cursou o Cardeal Dom Alexandre dos Santos (1924-), que foi o primeiro sacerdote negro, o primeiro Bispo e primeiro Cardeal Moçambicano. Em Setembro de 1939, deu entrada no Seminário Menor de Maria Imaculada de Amatongas, na actual província de Manica, onde fez o nível básico do ensino secundário, tendo concluído o 5º ano em 1944.

Igreja. Padre e alunos. ANTT
Por esta altura era dirigido pelo Padre Joaquim Marques que fora nomeado em 1942. Estranhamente o seminário parece ter acabado em 1944, consoante consegui apurar nos escritos na revista Missões Franciscanas, de 1948. Este facto torna mais difícil compreender a quem se destinava esta refeição de recepção.

Alunos da Missão de Amatongas 1925. ANTT.

Vejamos então a Ementa:

Começava com “Canja à Musungo” que, em linguagem bantu significa homem branco, o que nos faz algum sentido. Seguia-se “Peixe frito com salada”; depois “Costeletas de galinha à portuguesa” e por fim “Bifes de Mpala-mpala à africana”, que presumo fosse impala. A terminar a refeição “Creme – Pudim”; queijo e frutos colhidos na Missão.

Maquete geral apresentada na Exposição Colonial de Paris em 1931. ANTT
Os alimentos referidos eram todos locais e explicam-se pela abundante produção agrícola aí existente. O padre Santos Denis considerava que “Em toda a colónia não existia nenhuma outra missão em que as árvores de fruto estivessem tão desenvolvidas”.[1] De tal modo que a Missão chegou a influenciar o nome das plantas. No mesmo artigo era dito: “A banana do Natal, por nós introduzida nesta região, tem em algumas povoações o nome de Mutigu ná padiri, por ter sido levada da Missão. E os europeus com quintas cultivavam o abacate, cujas sementes foram dadas pela Missão, chamando-lhes do “tipo Amatongas”.

Sobre a pecuária o mesmo padre dizia que a maior influência sobre a economia indígena fora a criação de galináceos. Embora entre os indígenas ainda se encontrasse a pequena galinha cafre, muitos levaram exemplares mais apurados da Missão.

Que a Missão era pródiga nestes animais não há dúvidas, a avaliar pela ementa!.

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Bibliografia:

- Missões franciscanas portuguesas, 1898-1949: no seu cinquentenário. Director P. E José Alves Pereira. Braga: Missões Franciscanas. Número 62. Junho-Setembro de 1948.

- Blog Delagoabayworld - https://delagoabayworld.files.wordpress.co

 [1] Missões Franciscanas, p. 53.