segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O garden party em 1906 - 2


Ementa do Garden Party. Colecção da autora.
Revelo finalmente a ementa do garden party que teve lugar nos jardins do Paço das Necessidades, no dia 24 de Abril de 1906.
Foi o achado da ementa que despoletou esta conversa. Trata-se de um lanche destinado a vários milhares de pessoas[1], que a Illustração Portugueza descreveu como «uma festa deliciosa oferecida por suas Majestades El-Rei D. Carlos e Rainha D. Amélia aos congressistas médicos», mas onde estiveram presentes os habituais convidados do «alto funcionalismo palatino», do corpo diplomático e aristocracia. Os convidados foram recebidos à entrada do jardim pelo conde de Figueiró e por D. Fernando de Serpa.
Convite para o Garden Party enviado pelo Mordomo-mor. Colecção da autora.
Após a chegada foi servida a refeição, descrita como um lunch, disposto em quatro bufetes, um com 70 metros e os outros com 50, 30 e 20 metros. O serviço foi feito por criados em traje de gala. Como nos mostra a ementa, o lunch consistiu em: Croquettes, Mortadelle et Salami; Sandwiches; Petits pâtés; Filet de boeuf à la Russe; Jambon et Langue Ecarlate; Mayonnaise de Langouste; Brioches et Savarins; Glaces. Como bebida foi servido chá e café.
Em cima o Conde de Figueiró e D. Fernando de Serpa a receber os convidados.
Em baixo um aspecto da reunião. Illustração Portugueza, 30 de Abril de 1906.
Suas majestades retiraram-se às 18 horas começando a debandada, mas uma hora depois ainda se viam convidados nos jardins.
O rei D. Carlos e D. Amélia. Illustração Portugueza, 30 de abril de 1906.
Embora os jornais da época se refiram a figuras internacionais de renome, este acontecimento serve-me de mote para falar em dois médicos importantes portugueses, quase ignorados ou muito esquecidos. Refiro-me a Luís Cebola[2], o convidado a quem pertencia o convite e a ementa e Aniceto Mascaró.
Occidente, 30 de abril de 1906
Começo por referir este último, pelas piores razões. A primeira vez que ouvi falar do Dr. Aniceto Mascaró, oftalmologista, natural da Catalunha, mas residente em Lisboa há três décadas à data da sua morte, foi quando estudei os licores. Mascaró foi o autor de um quadro a óleo que existiu na Casa Ginjinha Sem Rival, às Portas de Santo Antão, onde se exaltam as virtudes da referida bebida. Publicado no livro «Alfacinhas» desapareceu sem deixar rasto. Este oftalmologista foi um protector dos pobres e, no seu consultório atendia muitas pessoas gratuitamente. Em Lisboa fundou um instituto para cegos e é da sua autoria um método de ensino para cegos, uma alternativa ao Braille[3], com que pretendia melhorar a qualidade de vida destes. O seu consultório ficava na Rua do Alecrim e até, há pouco tempo existia no edifício que faz esquina com a Rua do Ferragial, apenas visível de cima do arco uma placa com o seu nome. Voltei lá para a fotografar porque não encontro a foto e constatei que, durante a renovação (destruição, como tem vindo sendo costume na Baixa) do edifício, esta desapareceu.
Quadro pintado por Aniceto Mascaró que esteve na Ginjinha das Portas de Santo Antão.
Mas voltemos ao Dr. Aniceto Mascaró que durante o Congresso teve destino semelhante ao da sua placa. Desapareceu da terra, isto é, teve morte súbita antes de fazer uma conferência. A sua morte e enterro que teve lugar ainda durante o congresso médico foi considerada a única nota triste deste evento de sucesso.
Dr. Luís Cebola em jovem. Colecção da autora.
Quanto a Luís Cebola, sobre o qual ultimamente têm vindo sendo feitos alguns estudos, foi um médico psiquiatra (alienista, nos textos da época), discípulo de Miguel Bombarda, que durante muito tempo esteve esquecido. Introduziu métodos inovadores, quando esteve à frente da Casa do Telhal, de que se salienta a ocupação ergoterápica, isto é, a terapêutica pelo trabalho e a criação de um Museu da Loucura, na década de 1920, onde expunha os trabalhos dos doentes. Lá se encontram obras de Stuart de Carvalhais, entre outras, feitas durante os seus internamentos relacionados com o alcoolismo. Uma delas, uma imagem satírica do médico cujo perfil surge desenhado sobre … uma cebola.
Dr. Luís Cebola à Esqª na foto. Colecção da autora.
Ao longo da sua vida Luís Cebola escreveu mais de 20 livros. Foi um republicano fervoroso, tal como muitos médicos da época e a sua proximidade ao poder explica a persistência da Ordem Hospitaleira dos Irmãos de S. João de Deus, na casa de Saúde do Telhal.
Dr. Luís Cebola à frente do seu Castelinho, no Estoril. Colecção da autora.
Só por curiosidade não posso deixar de dizer que foi Luís Cebola que mandou construir o Castelinho de Nª Srª de Fátima, no Estoril. Nunca lá viveu mas ia para lá ouvir o mar e esquecer-se dos seus problemas como psiquiatra.
O poste já vai grande e para terminar só me ocorre dizer esta generalidade: «Isto anda tudo ligado».

Bibliografia:
Illustração Portugueza, 30 de Abril de 1906.
Occidente, Nº 984, 30 de Abril de 1906
Pereira, Denise Maria Borrega. (2015). Visões da Psiquiatria, Doença Mental e República no Trabalho do Psiquiatra Luís Cebola (1876-1967)…. Dissertação para obtenção do Grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia. Lisboa: FCT.
Pina, Esperança M.; Nunes, Mª de Fátima. (2012). «O XV Congresso Internacional de Medicina de 1906» in Arte e Viagem, coordenação de Margarida Acciaiuoli e Ana Duarte Rodrigues. Lisboa, Instituto da História de Arte: 155-161.



[1] O Mordomo-Mor emitiu cinco mil convites extensíveis às senhoras. É referida a presença de 7.000 convidados nos jardins.
[2] Jovem médico, uma vez que terminou o curso nesse mesmo ano.
[3] Que eu tenho, em parte incerta.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O garden party de 1906 - 1


 
O Occidente, 26 de Abril de 1906
Hesitei no título, não sabendo bem se devia dizer «O Garden Party» ou «Um Garden Party»?
Qualquer uma das expressões estaria incorrecta porque na realidade, aquando do XV Congresso Internacional de Medicina, que teve lugar em Lisboa, entre 19 e 26 de Abril de 1906, houve dois acontecimentos sociais com essa designação.
Os anfitriões do garden party em Monserrate
Organizado por vários médicos portugueses proeminentes, onde se destacava Miguel Bombarda (1851-1910), trouxe a Portugal uma comunidade científica internacional de renome. A sessão inaugural teve lugar na Sociedade de Geografia enquanto as sessões científicas decorreram na escola Médico Cirúrgica do Campo de Santana.
Alguns dos convidados estrangeiros em Monserrate, Illustração Portugueza 26-4-1906
O acontecimento teve eco em vários jornais porque pela primeira vez visitavam Portugal quase dois mil congressistas. O programa, muito bem organizado, previa várias visitas científicas a hospitais e institutos, mas também uma série de eventos sociais organizados por uma comissão de senhoras, mulheres de médicos.
Passo por alto alguns desses encontros e visitas, como uma ida ao Estoril, a Sintra, outra a Vila Franca de Xira, para assistir a uma tourada, com regresso de barco, uma soirée para assistir a um rancho folclórico do Minho, etc., para nos concentrarmos nos garden parties.
Os viscondes de Monserrate
Este tipo de acontecimento social, tipicamente inglês, entrou em moda durante o reinado da rainha Victoria. Trata-se de um reunião formal (e os trajes indicam isso mesmo), que tem lugar num jardim e em que é servido um lanche com chá, sandes, bolos, etc. Ainda hoje em Inglaterra eventos deste tipo têm lugar anualmente, considerando-se o início do acontecimento a chegada da rainha, anunciada por Música.
Em Portugal no final da monarquia devia também ser moda. O oftalmologista Gama Pinto organizou durante o congresso uma festa nos jardins da sua casa e o mesmo fez Mauperrin Santos que ofereceu um five o’clock tea na Escola Académica.
Palácio de Monserrate, Archivo Pitoresco, 1866
Muito frequentado foi o garden party oferecido pelo inglês Sir Francis Cook e sua mulher, os Viscondes de Monserrate. Como as muitas fotografias publicadas nos jornais da época nos mostram, a recepção aos convidados foi feita pelos próprios viscondes de Monserrate e pelo conde de Mesquitela. Os convidados espalharam-se depois pelos belos jardins, antes do lanche propriamente dito, sobre o qual não temos informação. 
Várias imagens do passeio pelos jardins de Monserrate IP 30-4-1906
Mais sorte tivemos com o garden party oferecido por D. Carlos e D. Amélia nos jardins do Palácio das Necessidades. Num lote de fotografias que adquiri vinha um envelope com um convite para o Dr. Luís Cebola (de que falaremos mais tarde) assistir ao garden party que se realizou no dia 24 de Abril de1906 pelas 16 horas da tarde, no jardim do Paço das Necessidades.
Sobre ele falaremos no próximo poste.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Toalhas e guardanapos...

Toalhas e guardanapos, a forma como “vestimos a mesa” deu um livro

Alexandra Prado Coelho, Jornalista

Parece um assunto doméstico, mas a história dos tecidos que  colocamos entre a mesa e os pratos cruza-se com a história da economia e da sociedade. Ana Marques Pereira seguiu as pistas dos panos que, ao longo dos séculos, têm vestido as mesas.
Falamos muito do que se coloca em cima da mesa – da comida, em primeiro lugar, mas também, e cada vez mais no universo do fine dining, da louça, dos talheres. Há, no entanto, um elemento que tende a ficar esquecido: as toalhas. Juntamente com os guardanapos, as tolhas são hoje os parentes pobres em muitas mesas. Muitos restaurantes optaram mesmo por prescindir delas, preferindo o contacto directo com a madeira (ou outro material). E, em casa, as boas toalhas geralmente só saem das gavetas em dias de festa.
Foi precisamente para as modas que, ao longo dos tempos, ditaram a forma como se “veste a mesa” que a investigadora na área da alimentação Ana Marques Pereira se propôs olhar. O resultado é Vestir a Mesa, um livro de peso, com uma recolha de imagens excepcional e um trabalho de pesquisa como nunca antes tinha sido feito sobre este tema que, sendo do quotidiano, vai da arte à indústria..........
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Parte da crítica da jornalista Alexandra Prado Coelho publicada hoje no «Fugas« do Jornal Público (19-1-2019), que muito me agradou. Obrigada.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Audoire, charcutier-traiteur em Paris


O requinte do interior desta loja chamou-me à atenção. Trata-se de um anúncio publicado numa revista francesa de antiguidades «abc decor» de 1968.
Podemos observar uma montra no interior da casa Audoire, charcutier-traiteur, em Paris, que presumo já não exista porque não consegui encontrar qualquer informação na internet.
Na montra, decorada com extremo gosto e cuidado, podemos ver travessas de pequenos salgados, canapés, patés, aspics, assados, etc., que se presumem serem produtos relacionados com a arte de charcutaria. Na realidade o proprietário identifica o seu nome ao ofício de charcutier-traiteur. Procurei encontrar tradução correcta para o português, mas embora tenhamos tido charcutarias finas (estou a lembrar-me dos Três Porquinhos, ao Rato), não corresponde exactamente ao mesmo.
Traiteur ambulante in Costumes de toutes les Pays
Vejamos: existe uma diferença entre restaurateur (“restaurador” no sentido antigo de proprietário de restaurante: o que restaurava as forças) e traiteur. O primeiro, tradicionalmente, serve as refeições no local, a troca de pagamento, enquanto o segundo, embora realize as mesmas funções estabelece um contracto de serviço que lhe permite realizar essas refeições em casa do cliente, numa instituição, ou onde for acordado. Mais modernamente diríamos que é uma pessoa que fornece catering. Na realidade este profissional está preparado para servir, de forma completa um grande número de refeições, mas também prepara iguarias que podem ser encomendadas no local e levadas para casa. Assim é um fornecedor de alimentos mas a que se associa a ideia de delicatessen.
Empregada de Traiteur. Costumes de Ouvriers. In Gallica
No século XIX em França existiam vários tipos de traiteurs, como o traiteur-rôtisseur, que tinham também nos seus estabelecimentos uma table d'hôte. Isto significava que tinham uma mesa com menu fixo para servir clientes, o que acontecia também em Portugal, na mesma época em hotéis e restaurantes.
No caso presente o proprietário era um charcutier-traiteur, o que significa que podia servir no local, ou ao domicílio, produtos relacionados com a charcutaria. No próprio anúncio é exemplificado que, no que respeita ao local, dispunham de: sala, material, roupa de mesa, louça e serviço de vidros.
Book of Buffets, 1968
Publicitavam as suas especialidades que eram as seguintes: terrines de aves, de patos ou de coelho em porcelana d’Auteuil*, mas também o foie-gras, salsichas em brioches e toda a pastelaria. Tinham capacidade para servir pequenos jantares, almoços (lunchs) até 100 pessoas, em especial para festejos de comunhões, baptizados e casamentos.
Poulard á la Godard, Joules Gouffé.
A apresentação das iguarias fazem lembrar as imagens publicadas no livro, The Professional Chef's Book Of Buffets, de 1968, ainda na linha das elegantes construções do século XIX da autoria de Joules Gouffé. Como as apresentações elaboradas de hoje nos parecem simples.

 À frente de quem esteve Jacques Lobjoy que, em 1968, lançou o primeiro serviço de mesa designado Chambord, recuperando imagens do séc. XIX, tal como na série «Caça», com desenhos de Jean Charles François Leloy (1774-1846), que seriam mais provavelmente os escolhidos para a casa Audoire.

domingo, 6 de janeiro de 2019

O toucinho-do-céu das Costinhas

O toucinho-do-céu, tal como as tortas de Guimarães, são doces tradicionais de Guimarães. Originalmente fabricados pelas religiosas do Convento de Santa Clara, após o seu encerramento as receitas viriam a ser herdadas pela Casa Costinhas que continua a produzi-los seguindo as técnicas tradicionais.
Em várias regiões do país encontramos um doce com esta designação. Mencionamos o de Murça, o de Amarante, o algarvio e o alentejano e o do Convento de Odivelas, como sendo os mais conhecidos. As receitas variam um pouco mas fundamentalmente são doces feitos com ovos, miolo de amêndoa pelada, açúcar e apresentam-se com a forma de um queijo redondo achatado. As quantidades variam consoante as receitas, mesmo numa determinada região, podem levar um pouco de farinha e a receita alentejana inclui uma pitada de cravinho-da-Índia em pó e de canela. 
Quanto à receita de Guimarães a quantidade de amêndoa é menor e esta é substituída por abóbora chila, enquanto antigamente era feita com calondro, segundo nos informa Isabel Maria Fernandes no livro Doçaria Tradicional Vimaranense. Também segundo a mesma autora era um doce muito apreciado na Páscoa. Hoje come-se todo o ano mas é sobretudo apreciado no Natal.
Caixa antiga em madeira forrada a papel da Casa Costinhas
Na minha última visita a Guimarães não resisti e comprei uma caixa com o belo do doce. Belo porque é apresentado em caixa de cartão, neste caso octagonal, decorada com papel de lustro recortado e flores no mesmo material e fios dourados. Logo esta decoração nos remete para o universo conventual onde a arte do papel recortado era executada com mestria. Há alguns anos atrás, quando ainda desconhecia este doce, adquiri-o por encantamento pela sua apresentação. Não me arrependi tal como hoje. É um doce compacto menos enjoativo do que os outros toucinhos-do-céu por ter um predomínio de doce de chila, que o torna mais húmido e extremamente agradável. 
As três irmãs Costa. Fotografia da Casa Costinhas.
A Casa Costinhas deve o seu nome a três irmãs com esse apelido: Adelina Ribeiro Costa, Maria José Costa e Maria Costa, que aprenderam a receita no Convento da Clarissas vimaranense. À frente da loja está hoje uma das suas sobrinhas, Maria Elvira Silva Ribeiro e sua filha. Foi com uma das tias que, após o encerramento do convento em 1910, passou para a vida civil que Maria Elvira, conhecida na cidade por Birinha, aprendeu a fazer estes doces. Fiel a esses ensinamentos tem seguido a tradição, onde se inclui o uso dos papéis recortados, que tanto me encantam.
Florinhas de papel recortado da Casa Costinhas
Falei com ela mas infelizmente quando a quis fotografar já havia recolhido à cozinha e, segundo a filha, estava enfarinhada e não mostrou qualquer vontade em regressar. 
Vitrine com cesto com flores de açúcar.
As fotografias que se mostram forma tiradas de uma pequena vitrine no interior da loja.