quinta-feira, 26 de novembro de 2020

As festas do Divino Espírito Santo na Picanceira

Segundo alguns teria sido a Rainha Santa Isabel, a instituidora da primeira festa do “Império do Espírito Santo”, realizada no Convento de Franciscanos de Alenquer, cerca de 1323. Foi associada a estes ideais que se instituíram algumas Confrarias dedicadas ao sustento dos pobres, à criação de hospitais e à organização de bodos.

As festividades do Espírito Santo têm lugar no Pentecostes e correspondem a uma sobrevivência de antigos rituais pagãos, como as Saturnalia romanas. Isso explica a distribuição da carne de reses sacrificiais e do pão bento. Com estas festividades invocava-se a protecção divina contra certas calamidades naturais, como a peste, no Continente ou, mais tarde, os sismos nos Açores.

Espírito Santo. Pentecostes. Francico Henriques. MNAA

Em Portugal continental poucas festas do Divino Espirito Santo sobreviveram. Mantém-se ainda as do Penedo (Colares), as de Cardigas (Mação), as de Eiras (Coimbra) e a mais conhecida, em Tomar. Esta última designada mais popularmente por Festa dos Tabuleiros, pela presença de inúmeras jovens com tabuleiros de pão à cabeça, decorados com flores.

Contudo se falarmos em Festas do Divino Espírito Santo vem-nos imediatamente à cabeça as que têm lugar nos Açores. A sua importância é tão grande que todos os anos os emigrantes açorianos regressam à sua terra para nelas participarem.

Pormenor da fotografia. 1928

Por isso me espantou uma fotografia com a representação de uma festa do Espírito Santo que teve lugar em 1928 na Picanceira (S. Isidoro - Mafra).

Fotografei a Picanceira há muitos anos quando ainda esperava integrar as cozinhas populares no meu livro Cozinhas. Espaço e Arquitectura. Ficou limitado às casas senhoriais mas as imagens desse bairro operário com 23 moradias unifamiliares, em fila, nunca se me apagou da cabeça. Infelizmente não sei onde param as fotografias que agora seriam de grande utilidade.

Fotografia de Miguel Machado publicada no facebook de O Saloio

Designado Bairro dos Ilhéus, faz parte da Quinta dos Machados. Esta quinta foi fundada em 1830 por Domingos Dias Machado, proveniente dos Açores, grande agricultor e que foi Presidente da Câmara de Mafra. Anexo a ele foi construído o  bairro dos Ilhéus, no século XIX, adaptando um estilo insular, baseado na arquitetura da ilha de São Miguel, e adaptando alguns aspectos de arquitectura vernacular da região. Domingos Machado necessitava de trabalhadores para a sua propriedade agrícola e foi buscar ao Açores famílias de conterrâneos seus para trabalharem nas suas terras dando-lhes alojamento.

As casas, de pequenas dimensões, com dois pisos, impressionam sobretudo pelo aspecto do conjunto e é sobretudo a imagem da zona posterior com os bojos dos fornos individuais que mais chama à atenção.

Império do Espirito Santo nos Açores

Explica-se assim a festa do Divino Espírito Santo num local tão inusitado. Eram os açorianos a festejar uma data tão importante para eles. Não é possível dizer se a festa teve lugar na Quinta ou na rua principal do bairro, para onde davam as casas, e onde se situavam as portas de entrada, ao nível do piso superior.

Coroa do Espirito Santo que encima os tabuleiros de Tomar. Trabalho de Otilia Marques de Tomar.

Nota-se a presença do padre, do militar e de pessoas importantes, todas vestidas a rigor para a ocasião. Um número elevado de crianças está também presente na fotografia. Sobre a mesa improvisada, coberta com toalhas brancas está presente o bodo que seria consumido após as cerimónias.

Passou quase um século e tudo mudou. Felizmente ficou-nos esta memória.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Uma factura inventário

Uma factura, mesmo que apresente poucos elementos, é quase sempre informativa. Contudo existem algumas que, pela riqueza de pormenores, nos indicam a existência de uma loja que desconhecíamos, os produtos que vendia, os preços na época, etc.

Para além do aspecto gráfico, muito cuidado nalguns casos, em especial no século XIX, podem também contar-nos uma história.

Quando fiz a investigação para o livro «Mesa Real», publicado pela primeira vez em 2000, apresentei os cabeçalhos de três facturas que encontrei na Torre do Tombo e que mostravam a evolução ao longo dos anos de uma oficina de latoaria, para fábrica de latas e depósito de conservas alimentares.

Esta factura de uma serralharia que agora me chegou às mãos, para além da sua beleza gráfica, é um verdadeiro mostruário de peças em ferro feitas pela Fábrica Lisbonense de Móveis de Ferro. Propriedade de A. P. Santos Chaves, estava situada na Rua da Palma, cuja fachada do edifício com o funcionamento no seu interior é visível na parte superior da factura. Tinha dois depósitos, um na rua Augusta e outro na Rua dos Fanqueiros, portanto bastante centrais, que deviam funcionar como locais de venda.

O mais interessante contudo diz respeito ao elencar de produtos vendidos que se imagina iriam ocupar o seu lugar numa nova casa, em 1874. Supomos uma casa para uma família com algum poder económico, uma vez que as aquisições foram feitas todas de uma vez e não progressivamente.

Lá encontramos os seguintes artigos: 3 lavatórios, com suportes para espelho e baldes respectivos; 1 bacia e um jarro; 1 bidé; 2 leitos à inglesa; 1 escarrador; 2 alguidares de zinco; 3 bacias uma delas para banho; 1 fogão de quatro bocas circular; 1 cabide para chapéus e até uma cama para bonecas.

É caso para dizer: há dias de sorte!.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Objecto Mistério Nº 63. Resposta: Garrafa de licor.

 Deve dizer que apesar de ter mais de um milhar de garrafas de licor, adquiridas quando fiz o livro Licores de Portugal 1880-1980, e que foram crescendo posteriormente, este modelo me era completamente desconhecido.

Se existiu um industrial imaginativo e conhecedor, Leopoldo Wagner (c. 1858-1923), foi certamente um deles. A sua variedade de bebidas licorosas e os correspondentes modelos de garrafas criados por si ou adaptados para as mesmas, foi enorme[1].

Fundador da Fábrica Âncora apresentava um catálogo de bebidas a que hoje em dia nenhuma empresa se pode comparar. Para além da beleza das garrafas as bebidas eram de qualidade. Durante anos, e já após do fecho da fábrica, ainda eu procurava o Xarope de Groselha que era, de longe, o melhor em Portugal.

Leopoldo Wagner registava os modelos que criava, o que nos permite datá-los, mas não consegui encontrar este pinto, apesar de ter na base escrito MR (marca registada) que se aplica à marca da fábrica e não ao modelo.

Dito isto, trata-se portanto de uma garrafa para licor, provavelmente de “Licor de Ovo”. A fábrica onde foi feita a garrafa não está identificada mas inclino-me para poder ter sido fabricada na Fábrica Aleluia, em Aveiro.

PS. Se alguém tiver informação adicional agradeço que a partilhe. Obrigada.

--------------------------------------

[1] Ana Marques Pereira. Licores de Portugal (1880-1980). Ed. da autora. 2013.