segunda-feira, 14 de março de 2016

O mistério do pão de Mafra

Até aquele dia nunca tinha pensado porque existia um pão de Mafra. A origem do pão alentejano era fácil perceber com todos aqueles campos semeados de trigo e outros cereais. Era inevitável que houvesse pão alentejano.
Quando há algumas semanas fui com uns amigos para a chamada zona saloia almoçar levaram-me a uma padaria comprar o verdadeiro pão de Mafra. Era uma unidade de produção grande com a vendedora vestida de branco com touca branca. Mostrei-me interessada e o meu amigo Zé Rosa que conhece bem a região quis mostrar-me o tradicional pão de Mafra.
Na realidade este pão é o mais conhecido dos pães saloios, assim chamados por serem produzidos na região saloia que desde a Idade Média abastecia a cidade de Lisboa, onde era vendido nas ruas.
Era também daí que vinham os produtos hortícolas cultivados pelos descendentes dos árabes que haviam saído da cidade de Lisboa, depois da sua ocupação. Devem ter também cultivado cereais, o que hoje já não é visível porque só assim se explicava a produção de pão. Mas um outro factor deve ter pesado neste fabrico: o da intensa moagem feita em moinhos de vento que ainda hoje se podem ver nesta região. 

Todo este raciocínio vem a propósito da conversa com uma senhora da aldeia de Santo Estevão das Galés, de 71 anos de idade, de nome Maria do Rosário, mas a quem, como ela disse chamam Mimi. Tinha fama de fazer o melhor pão da região e valia a pena lá ir. Quando chegamos encontramos uma senhora vestida de preto e o forno estava há muito sem funcionar. Já não fazia pão. Começou-me a contar as razões desta alteração enquanto mostrava o local de fabrico do pão, a masseira e os outros utensílios. O forno fechado estava coberto com jornais e indicava que há muito não era usado. 
Com o vagar de quem está sozinha começou pelo princípio, pelo tempo em que conheceu o marido e em que começaram namoro. Depois casaram. O marido era moleiro, filho e neto de moleiros. Tinha sido concebido dentro do moinho. Tentou deixar de ser moleiro, mas não conseguiu e voltou a esta profissão e ela, depois de casada, fez-se padeira. Chegou a ser considerada a melhor padeira da região como também confirmam as fotos de alguém que a fotografou mais nova, vestida de branco a fazer pão, que encontrei depois na internet.
A conversa desenrolava-se num rosário contínuo, que ia sempre parar à doença do marido. Descreveu-me em pormenor o dia em que o marido adoeceu, a chegada da ambulância, os diálogos e a partida do marido para o hospital. Quis apressar-lhe a narrativa, saber porque afinal já não fazia pão. 
As pessoas que me acompanhavam impacientavam-se para partir e ela cada vez mais se enredava na sua história. Pedi-lhe para fotografar e rapidamente destapou o forno, pegou na pesada pá de madeira que se encontrava presa nos barrotes do tecto e fingiu que tirava o pão do forno. Por momentos voltou ao passado. Os olhos brilharam e parecia que tudo era como antigamente.
O discurso pormenorizado continuava, saboreando o momento e arrastando-o para me prender. Para encurtar a conversa, que gravei no telefone quando me apercebi que ia ser longa, perguntei se o marido tinha falecido no hospital. Não, ainda voltou para casa doente e ela teve que tratar dele. Quando faleceu ela adoeceu. Agora estava melhor. Sugeri-lhe que talvez pudesse fazer o seu pão tão apreciado novamente. Talvez, com a ajuda do filho, respondeu-me. Eu prometi voltar e ir comprar-lhe pão.
Ficamos as duas pelas promessas que sabíamos que nenhuma ia cumprir. Foi uma boa tarde para as duas. 

7 comentários:

Merridale and Ward disse...

Pão de Mafra: absolutamente delicioso!

Ana Marques Pereira disse...

João José Horta Nobre,
Tem toda a razão. Tencionava falar nas características do pão, mas como optei por desenvolver a história, já não fazia sentido. Cumprimentos.

Manuel Tomaz disse...

Também o de Rio Maior deve ter a sua história... Gostei desta!

Luis Filipe Gomes disse...

Agradeço a beleza da narrativa, apesar da saudade que por ela passa.
Contaram-me que pelas encostas até à orla marítima onde hoje se vêem urbanizações pinheiros e eucaliptos havia campos de cereais, campos de pão.

Unknown disse...

Uma antropóloga no terreno... O Pão de Mafra é um tema interessante, mas enquanto os fornos não se acendem, porque não uma história de vida? Obrigada Ana!

Ana Marques Pereira disse...

Manuel Tomaz, Luis filipe Gomes e Conceição Montez,
Obrigada pelos comentários. É sempre bom saber que o que se escreve chega a alguém. Os blogues, sem "likes", estão cada vez mais silenciosos.

Anónimo disse...

Obrigada pela história.