segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os amers ou bitters

Os amers, também conhecidos por bitters, são um tipo de licor usado como aperitivo. São feitos a partir de uma infusão de plantas amargas e de entre estas as mais frequentemente usadas são a genciana amarga (Gentianella amarella), a laranja amarga (Citrus aurantium bigarada) e a quinina (Cinchona officinalis).
A quinina foi sobretudo usada como planta medicinal e também em receitas de cocktails antigos. Hoje em dia podemos encontrá-la em pequenas quantidades na água tónica, muito usada para adicionar ao gin.
Entre os amers mais famosos está o «Angostura» de que lhes falarei à parte.
Em Itália, onde são conhecidos por amaro, são produzidos dois bem divulgados: o «Campari», com uma fórmula criada por Gaspare Campari em 1860 e o «Fernet Blanca» que data de 1845 e que se baseia numa receita inventada por Maria Scala onde entra camomila, ruibarbo, cardamomo, anis e cravo-da-índia.
Em Inglaterra são sobretudo conhecidos os orange bitters, de que vamos falar.
Antes porém, não podemos deixar de referir um dos mais conhecidos bitters, de origem francesa: o «Amer Picon». Trata-se de um licor de laranja amarga criado por um francês chamado Gaetan Picon, em 1837. Da sua composição fazem parte o amargo da casca da quina, laranja e genciana. Quando Picon estava no exército no Norte de África, em Argélia, contraiu malária. Tentou recriar uma bebida que a sua avó tinha anteriormente feito para ele, numa anterior infeção. Destilou uma infusão de alcóol com casca de laranja e a esta juntou raiz de genciana, quinina, xarope de açúcar e caramelo. Recuperou do acesso de malária, atribuindo a sua recuperação à bebida que havia produzido, facto a que, provavelmente, não terá sido alheio a presença da quinina. Do mesmo princípio partiu o seu superior que lhe encomendou maiores quantidades para as suas tropas.
Assim começou a produção de um dos «amers» mais famosos. Embora durante alguns anos apenas fosse conhecido na Argélia, onde era produzido, foi ao ganhar um prémio na Exposição Universal de Londres, em 1862, que a sua fama se disseminou.
O aumento de encomendas obrigou à abertura de uma fábrica maior, em Marselha, embora as laranjas continuassem a vir da Árgelia. A fama do «Amer Picon» não parou de aumentar tendo-se transformado numa bebida popular ainda no século XIX. Era servida misturada com água ou cerveja, tornando-se numa bebida agradável e tinha a vantagem de ser barata. Em 1937, no centenário da empresa, foi publicado um livro com a história da mesma.

Em Portugal, no final do século XIX e na primeira metade do século XX os licores tiveram grande aceitação . De entre eles realçamos o nosso bitter, que foi produzido por Leopoldo Wagner, o fundador da Fábrica de Licores Âncora.
Este bitter era feito com laranja amarga, também conhecida por laranja de Sevilha ou bigarada. Esta laranjas, distintas das laranjas doces (Citrus Sinensis), foram as primeiras a ser introduzidas na Europa, no século XII. A planta é oriunda da Ásia (Índia, sudeste da China e sul de Vietname). Os árabes levaram-na para a Arábia no século IX e começou a ser cultivada na zona de Sevilha no século XII.

Quanto às laranjas doces foram trazidas pelos portugueses do Ceilão(1), no século XVI e fomos nós que introduzimos a laranja doce na Europa. Para impedir que os outros países a elas tivessem acesso, chegou-se mesmo, em 1671 (2), a proibir a saída das chamadas laranjeiras da China(3) para fora do reino, mandando-se fazer inspecções às embarcações. Foram exportadas para Inglaterra em número cada vez maior, tendo-se mantido um luxo até ao século XVII. 
Em várias línguas existe uma palavra diferente para a laranja amarga e a doce. É o caso da Grécia que usa a palavra nerantzi para a laranja amarga e portokali, para a laranja doce.
Por todas estas razões, o nosso papel nos amers ou bitters não foi original, mas os nossos licores de laranja de Setúbal eram forçosamente únicos.

(1) Williams, S. P., The Art of Dining, pp. 101 e 152.
(2) Collecção Chronologica das Leis Extravagantes , p. 57. Referido no livro Mesa Real.
(3) A designação de laranja da China levou a pensar que estas vieram da China, mas não há a certeza se as trouxemos deste país, da Índia ou do Ceilão.

6 comentários:

Carlos Caria disse...

Também os Açores, foram grandes produtores de laranja durante o século XVIII, , isto antes da introdução da cultura do Ananáz.
Cheram a estar ao Largo de Ponta Delgada cerca de 8 a 10 navios esperando lugar para atracar no porto de Ponta Delgada para carregar Laranjas destinadas a Inglaterra e Russia entre outros países.
Abraço
Carlos Caria

Ana Marques Pereira disse...

Carlos Caria,
Obrigado pelas suas informações. Um abraço

A.Teixeira disse...

São estas pequenas (grandes) precisões, explicando a distinção entre a laranja doce e a amarga e a diferença de datas da sua introdução na Europa que dão (ainda mais) valor a este blogue!

Uma pequena nota: em português, o maior país magrebino costuma-se designar por Argélia e não por Algéria.

Ana Marques Pereira disse...

A. Teixeira,
Obrigada sobretudo pela correção da Argélia, que vou modificar. Acho que estou a ficar disléxica.
Um abraço

Anónimo disse...

Fantastica pesquisa sobre a laranja........adorei e quase senti o perfume....... obrigada

Ana Marques Pereira disse...

Anónimo,
Eu é que agradeço o comentário, que não abundam e que me permitem ter uma ideia de como os artigos são recebidos. Obrigado.