segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O licoreiro da Casa Museu Anastácio Gonçalves (CMAG)

Para os que não puderam estar na apresentação da minha última palestra na CMAG, e se interessam pelo tema, aqui ficam alguns apontamentos sobre o objecto em si.

O licoreiro foi adquirido em 1963 pelo Dr. Anastácio Gonçalves (1889-1965), médico e amante de arte, para a sua casa de habitação em Lisboa, que adquiriu a José Malhoa em 1932 e onde reuniu uma diversificada colecção. A casa, hoje transformada em casa-museu, foi projectada inicialmente por Norte Junior para casa de habitação e atelier de José Malhoa.
Fotografia retirada do site da CMAG
Foi o interesse do coleccionador que fez surgir em Portugal um licoreiro francês do início do século XIX (1810?), com características interessantes. Integra-se no que os franceses designam como «cabaret à liqueurs», uma expressão para a qual nós não temos tradução, ficando-nos pela palavra «licoreiro», que tanto pode designar a garrafa em si como o conjunto desta, com ou sem cálices, integrado numa estrutura.
O licoreiro de que falamos é em prata e foi executado por um ourives de Lille, Theodore-Frederic Hardy, que trabalhou nesta cidade nos finais do século XVIII e início do século XIX. Sabe-se que trabalhou também com Seraphin Delahaye, cerca de 1800, mas não consegui apurar mais nada (1).
É constituído por um prato circular com 4 pés circundado por uma galeria arrendada e tem uma coluna central encimada por um vaso em forma de urna que serve de pega. Sobre a base apoiam-se cinco cestinhos de prata arrendada onde se inserem os cinco frascos destinados a licor. Estes são em cristal lapidado em todo o corpo e apresentam ainda restos de dourado, que os enriqueciam.
O facto de serem cinco os frascos licoreiros é já de si raro, um vez que estes habitualmente se apresentavam em número par. Mandava a etiqueta que se oferecesse aos convidados uma variedade de licores, de forma a estes poderem escolher os seus preferidos e, este tipo de utensílio, facilitava a sua apresentação, com evidentes vantagens estéticas.
Gravura existente no Museu de Artes Decorativas, Paris.
Um outro aspecto interessante diz respeito à existência de argolas adossadas aos cestinhos, destinadas à colocação das tampas, igualmente em cristal, quando se pretendia usar os frascos. Esta opção, que encontramos frequentemente nos galheteiros, é muito mais rara nos licoreiros. Torna-se contudo compreensível se pensarmos que a sua concepção saía das mesmas mentes de ourives que idealizavam as duas peças .
É o que podemos constatar neste desenho de um galheteiro e de um licoreiro, feito por um ourives francês entre 1814 e 1830 e que se encontra no Museu de artes Decorativas em Paris.
Galheteiro de Claude Delanoy. Foto de Antique Store 
Ou num outro galheteiro da autoria de Claude Nicolas Delanoy, com punção de Paris de 1789, em prata, da época Luís XVI em que apresenta a base oval mas, tanto os cestinhos como a coluna, apresentam semelhanças evidentes com o licoreiro da CMAG.

Este exercício de análise de um simples objecto faz-nos ver como é necessário pensarmos mais demoradamente sobre as coisas para melhor as compreender.

(1) Para quem estiver interessado no tema existe um livro de N. Cartier, Les orfévres de Lille, 2 vol, publicado em 2007, a que não tive acesso e que pode fornecer informação adicional.
(2) As fotografias não identificadas são minhas, feitas com autorização da direcção da CMAG.

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