terça-feira, 27 de janeiro de 2009

O Faisão, o rei dos galiformes

O meu pai veio a Lisboa e eu pedi à minha empregada para fazer para o almoço umas aves que estavam congeladas na arca.
Quando descongelaram veio ter comigo e disse-me: «Veja como é bonita. Até é uma pena comer-se». Olhei e vi que era um faisão. Pensei que eram umas perdizes que me tinham oferecido, mas essas estavam noutro saco.
Tinha uma cor de penas lindíssima e pensei igualmente que animais daqueles não deviam ser abatidos. Aproveitei e tirei-lhe fotografias.
Depois fui ler informações sobre o faisão e acabei por escrever sobre ele.
Percebi que é precisamente a beleza e o colorida das penas do faisão que o torna mais vulnerável aos olhos dos caçadores. Mas isso só acontece com os machos, porque as fêmeas são mais pequenas, têm as penas em tons castanhos, o que lhes permite uma maior camuflagem com a terra que lhes possibilita chocar os ovos nos ninhos com maior segurança. Esta diferença radical entre os dois sexos, referida como dimorfismo sexual, acontece nalgumas espécies e noutros elementos da sua família, a família Phasianidae, de que fazem parte os perus, os pavões e as galinhas.

Considera-se que o Faisão Comum (Phasianus colchicus) teve a sua origem na Ásia, mas foi trazido para a Europa pelos Gregos na antiguidade. Hoje, existem mais de 40 variedades de faisões .
Durante a Idade Média foram muito apreciados, a par de outras aves de grande beleza como os pavões e os grous. Mas se estas deixaram de ser comidas, o faisão manteve a sua presença nas mesas sofisticadas.
É fácil constatar que durante a Idade Média há várias referências que o mostram como um elemento importante.
A sua presença em iluminuras, como acontece, por exemplo, na margem inferior de um Breviário Franciscano, de cerca de 1430, feito na Itália do Norte para Maria de Sabóia, confirmam a sua distinção.
O mais famoso banquete medieval associado ao seu nome foi o que teve lugar em Lille, a 17 de Fevereiro de 1454 e que ficou conhecido como o «Banquete do juramento do faisão». Foi oferecido por Filipe de Borgonha e sua mulher Isabel de Portugal com o fim de promover uma cruzada contra os turcos que haviam conquistado Constantinopla. A cruzada nunca chegaria a ter lugar, mas o relato do banquete chegou até nós através das Memórias de Olivier de la Marche (1425 – 1502), que foi mestre de cerimónias de Filipe o Bom. No meio dos entremeses o Duque prestou o seu juramento sobre um faisão vivo, ornamentado com ouro e jóias a que se seguiram os votos dos nobres presentes. O banquete merece uma análise pormenorizada, que farei numa outra oportunidade.
Em Portugal, e apesar de o faisão existir na Europa há vários séculos, é ainda considerada uma espécie exótica e não está autorizada a sua introdução em zonas de caça.
Pelo contrário nos Estados Unidos só em 1733 foi introduzido o faisão, embora sem sucesso. Pessoas como George Washington, que esteve sempre à frente do seu tempo, teve faisões na sua casa de Mount Vernon.
Apesar dos esforços só em 1881 foi possível considerar que as aves, trazidas de Inglaterra, se encontravam adaptadas ao habitat americano.
O interesse desenvolvido pelo faisão manifestou-se, ainda no século XIX, em publicações como «An Interisting Bird; The Pheasant. Natural History, Shooting, Cooking» , escrito pelo Rev. H.A. Macpherson. A.J. Stuart-Wortley e Alexander Innes Shand e publicado em Nova York em 1895.

Ao longo dos séculos o faisão tem mantido a sua fama merecida como ave de qualidade apreciada pelos gastrónomos.
No meu caso comia-a estufada com castanhas, acompanhada de pão frito e cherovias fritas. Uma delícia que me fez esquecer a sua beleza natural.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Na pista da Tarte Tatin

O António Teixeira sugeriu-me há tempos que falasse sobre a Tarte Tatin. Nunca me teria ocorrido falar sobre este tema, mas é com imenso gosto que o faço.

Fundamentalmente é uma tarte de maçãs caramelizadas, cobertas com uma camada de massa, habitualmente folhada. Depois de pronta apresenta-se ao contrário do modo como foi cozinhada, com as maçãs para cima.

Foto de Romulo Yanes para "Epicurous"

A Tarte Tatin é muito apreciada pelos franceses e mal conhecida pelos portugueses. É também conhecida por «Tarte ao contrário» (tarte á l'inverse) porque se apresenta de «pernas para o ar», isto é, com a parte de baixo virada para cima.

Esta forma de apresentação tem levantado muitas dúvidas sobre a sua origem. Terá sido feita assim de propósito ou será que foi um desastre culinário que se transformou num sucesso?. As histórias sobre a sua criação rodam todas à volta de um acidente culinário, que passa pela queda da tarte ou pelo queimar do ponto de açúcar e que a improvisação de uma das irmãs Tatin, ao inverter a sua forma de apresentação, resultou num sucesso.
No Larrousse Gastronomique (na edição de 1967 e omitida na original de 1938) atribui-se a sua origem e subsequentemente o seu nome às irmãs Tatin (Stephanie e Caroline), que a teriam ”inventado”, na transição do século XIX para o século XX. Juntamente com seu pai Jean Tatin tinham um hotel com restaurante em Lamotte-Beuvron, perto de Orleães. O hotel chamava-se “Terminus” e ficava junto á estação de caminho de ferro, uma inovação, uma vez que o comboio aí tinha chegado em 1847. O Larrousse chama-lhes as «Meninas Tatin» e considera o prato como uma pastelaria de região de Soulogne.
Contudo Ali-Bab na «Gastronomie Pratique», publicada pela primeira vez em 1907, descreve os vários tipo de tarte, não menciona a Tarte Tatin, mas explica que a tarte à inglesa é uma tarte de frutas que se cozinha com a massa por cima. Nada portanto que não fosse conhecido. O que difere é a sua apresentação. A propósito aproveito para referir a importância de Ali-Bab na história da gastronomia, pseudónimo usado por Henri Babinski, engenheiro e gastrónomo e irmão do célebre médico neurologista que deu origem ao sinal de Babinski (private joke para médicos).

O sucesso desta tarte rompeu as fronteiras da província e chegou a Paris, aonde se tornou numa apreciada sobremesa do restaurante Maxim. Este facto teve grande impacto na sua divulgação, que a região da sua atribuída origem não deixou de aproveitar, passando-a a considerar uma doçaria regional, o que veio a justificar mesmo a existência de uma Confraria.

Foi também seu divulgador o escritor de gastronomia Curnonsky (1872-1956), considerado o «Príncipe dos Gastrónomos», que em 1926 a ela se referiu no livro «France Gastronomique: Guides des merveilles culinaires et des bonnes auberges françaises», uma obra precursora dos “Guias Michelin”. Foi ele quem divulgou a versão da sua origem acidental, transformando-a numa história credível. Nessa época já não existiam as meninas Tatin e o hotel já se chamava “Papin”, mas a tarte continuava a existir.
A verdadeira receita nunca foi tornada pública, mas existem inúmeras versões, em que apenas os ingredientes não variam: maçãs, manteiga, açúcar e farinha. É uma receita fácil de fazer e deliciosa. Não lhes deixo a receita porque está publicada em todo o lado. Só têm que escolher uma e experimentar.
Mas primeiro têm que decidir qual as maçãs que vão usar. Têm que ser maçãs que não se desfaçam, de preferência rústicas. As golden não são a melhor escolha, enquanto que as reinetas são preferidas por muitos. Depois há que escolher qual o tipo de massa: quebrada ou folhada. E até podem decidir usar outro fruto: pêras, alperces, etc.
Os puristas consideram que a Tarte Tatin se deve comer simples, tal como foi criada, mas outros acham que a mesma beneficia se for acompanhada com natas batidas ou gelado. E há quem a prefira morna. É tudo uma questão de gosto, que não vem para a história.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Os Pastéis de Molho da Covilhã e o uso do açafrão

Embora hoje em dia o açafrão tenha sido redescoberto nos restaurantes e se tenha até tornado numa especiaria em moda, reintroduzida nos mais variados pratos pelos chefes de cozinha mais conceituados, é ainda na cozinha tradicional que este tem a sua principal aplicação.

A especiaria é utilizada em vários países sobretudo em pratos de arroz e de peixe.
Em França é usada na «bouillabaise», que é uma caldeirada de peixe e em Itália no «Risotto Milanese».
Mas é sobretudo em Espanha, por influência árabe, que o seu uso se mantém mais divulgado. Para além da célebre «Paelha à Valenciana» é utilizado em pratos de grão guisado, nos «huevos rellenos», no gaspacho de La Mancha, nos ovos estufados e na tortilha à espanhola com açafrão.

Em Portugal, para além do arroz de açafrão, presentemente pouco é utilizado nas casas de família. No entanto no tratado de culinária do século XV, no Livro de Receitas da Infanta D. Maria é-lhe feita referência, em várias receitas. São disso exemplos a Tigelada de perdiz e a de coelho, os canudos de ovos mexidos, a lampreia, o picadinho de carne de vaca, a galinha desfiada, «outra receita de galinha mourisca» e até nos pastéis de carne, entre outros.

Existe contudo uma especialidade regional, muito apreciada, que quero aqui mencionar e que é o «Pastel de Molho» da Covilhã.
Trata-se de um pastel de massa folhada recheado de carne, que é comido como sopa. Embora algumas pessoas o comam com caldo de carne ou chá, a forma mais frequente e típica de o apresentar, é coberto com um caldo quente de açafrão e vinagre. O pastel em si apresenta semelhanças com o «pastel de Chaves», que é também um pastel folhado recheado de carne picada, mas que nessa zona é comido seco.

Sempre me intrigou a presença desta associação de dois elementos da culinária árabe: a massa folhada e o açafrão, numa região como a Covilhã. É conhecida a influência dos romanos na região, mas sobre a influência árabe pouco se sabe.


É possível que a colónia árabe que ocupou aquela área entre os séculos VIII e X, à semelhança dos açudes do Paúl, aldeia próxima da Covilhã, a que é atribuída a mesma origem, nos tenha deixado estes pastéis, como um dos seus legados? Neste caso os pastéis de molho remontariam a muitos séculos atrás e para os apreciadores desta iguaria, espalhados por todo o país, quando têm a oportunidade de os comer, devem ficar gratos às poucas pessoas que ainda hoje mantém esta tradição.

PS. Encontrei um blog (O Cantaro Zangado) onde sob o título «Fragilidades» foi publicada uma fotografia da flor do açafrão, numa das caminhadas pelo autor, na zona da Covilhã. É que estes bolbos dão-se bem nas zonas frias e as suas flores espreitam pelo meio da neve.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O Açafrão

A importância do açafrão em Espanha foi tanta que no século XIII o seu preço chegou a superar o do ouro, razão porque se lhe atribuiu o nome de «ouro encarnado». Ainda hoje se mantém uma especiaria de elevado preço. A razão para isso deve-se a que para perfazer meio kilo é necessário arrancar 70.000 a 80.000 estames de uma flor chamada crocus sativus. Este é um bolbo de pequenas dimensões que dá uma flor de cor violácea e são os estames dessa flor que se utilizam como condimento. À medida que as flores vão abrindo é necessário diariamente ir colhendo-as nos grandes campos cultivados. Faz-se depois a separação das flores dos estames, trabalho feito normalmente por grupos de mulheres.

O verdadeiro açafrão deve apresentar-se com uma cor homogénea de um encarnado vibrante. A sua mistura com estames de cor amarela indica uma qualidade inferior que deve ser rejeitada. Do mesmo modo o pó de cor amarelo etiquetado como açafrão corresponde quase sempre ao que, em inglês se designa por “turmeric”, que corresponde à curcuma longa, também designada por açafrão das Índias, que é um rizoma da família do gengibre, que depois de moído fica com cor amarela. Confere igualmente cor aos alimentos, mas é uma substância que nada tem a ver no que concerne o paladar, conferindo aos alimentos um gosto um pouco ácido e ligeiramente picante. É muito usado pelos indianos e faz parte do conjunto de especiarias que no conjunto constituem o caril.

A Espanha continua a ser um grande produtor de açafrão , onde foi introduzido pelos árabes juntamente com o arroz e o açúcar, no século VIII. São sobretudo importantes as culturas da região de La Mancha.
Mas outras regiões como Kashmira e países como a Índia, Turquia, China e Irão são hoje também grandes produtores.

O nome de açafrão vem do árabe az-za’fran, que significa amarelo. Directamente ou por via latina medieval transformou-se em safranum, usado na Península Ibérica, então sob domínio árabe, para toda a Europa.

A origem da planta é discutida, sendo mais concordante que tenha aparecido na Grécia, em Creta. Parece ter sido utilizada na antiga Mesopotâmia (presentemente o Iraque) há cerca de 5000 anos atrás, desconhecendo-se como se deslocou do Mediterrâneo para a Mesopotâmia, mas a hipótese mais provável é das trocas comerciais.
O seu uso manteve-se na antiguidade tendo-lhe sido atribuída uma grande importância como medicamento e também como corante. Autores como Homero, Plínio e Virgílio referiram-se a ele.

Mas foi através da culinária que a sua utilização chegou até nós. Sobre esse aspecto falaremos proximamente

sábado, 10 de janeiro de 2009

Dolores Botafogo e os seus livros


Tenho constatado que muitas das visitas do meu blog são de nacionalidade brasileira.
Embora os temas que abordo não sejam exclusivamente portugueses, devo confessar que fiquei surpreendida.
As influências gastronómicas portuguesas sobre a culinária brasileira são importantes e vice-versa, em especial após a estada da corte portuguesa no Brasil. Mas esse é um tema muito vasto sobre o qual não posso agora debruçar-me.
Pensei assim em falar num tema que tivesse interesse para os leitores brasileiros. Pensei em vários assuntos, mas não cheguei a ter tempo para me interrogar. O acaso deu-me a resposta.
De dois em dois meses recebo a visita do meu encadernador que leva os livros para encadernar e me traz os livros encadernados. Na ultima vez recebi, completamente renovados, dois livros brasileiros de culinária, que eu comprara um pouco maltratados.
Trata-se de duas obras de Dolores Botafogo «Bolos Artísticos» e «Boas maneiras. Recepções».
Desconhecia completamente a autora e resolvi fazer uma pesquisa. Com grande surpresa minha descobri que foi uma autora importante com cerca de doze títulos publicados, na década de 50. Não há dúvida que foi um sucesso editorial porque continuaram a publicar-se nas décadas seguintes e ainda hoje está à venda a edição inglesa de: The Art of Brazilian Cookery, considerado uma boa fonte de receitas tradicionais brasileiras. É uma reedição de 1993 de um livro de 1960.
Mas antes deste outros títulos surgiram. Para além dos já referidos menciono: «Prenda seu Marido cozinhando» e « Bandejas de salgadinhos, doces e balas».
Mas a sua verdadeira arte foi a de confeiteira. Os «Bolos Artisticos» tiveram várias séries, parecendo ser um tema inesgotável para a autora, que chegou mesmo no livro «Boas Maneiras» a acrescentar um «Apêndice com novos modelos de bolos».
Os seus bolos são de grande complexidade e como afirma a confeiteira brasileira Élide Macêdo, o uso de «muito glacê de bico em estruturas altas» fazem parte da tendência que se estendeu até os anos 50 por influência de Dolores Botafogo, que introduziu os primeiros livros sobre o tema no Brasil. Para simplificar a execução destas obras de confeitaria, numa espécie de Antonin Carême do século XX, a autora adicionava aos seus livros folhas soltas com desenhos dos moldes de partes dos bolos.

Não há dúvida que estamos perante uma confeiteira de excepção. Mas quando pesquisei sobre a biografia da autora nada encontrei. Sei que viveu na Urca, que hoje é um bairro do Rio de Janeiro, mas que foi a génese dessa cidade.

Mas vejamos de que modo vamos encontrar uma ligação a Portugal. A familia Botafogo tem origens portuguesas. O patriarca da família chamava-se João Pereira de Souza Botafogo (15407-1605) e nasceu na cidade alentejana de Elvas. Teria recebido a alcunha Botafogo por ser o responsável pela artilharia das tropas lusitanas no século XVI. A invasão da baía de Guanabara pelos franceses comandados por Villegagnon, levaram Portugal a enviar uma expedição para os expulsar. A missão portuguesa era comandada pelo Capitão-mor Estácio de Sá. Os portugueses desembarcaram no dia 1 de Março de 1565 na entrada da barra do Rio de Janeiro. Aí foi fundada a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Era uma faixa de terra que se situava entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar. Na altura era uma ilha e só mais tarde foi feito o aterro que a ligou ao que hoje é a cidade do Rio de Janeiro.
Em 1590 João de Souza Botafogo adquriria terras no local e seria o seu nome que iria ficar ligado ao bairro, que se chamou Botafogo desde então.

Mas da sua descendente mais nada consegui saber. Da sua extensa obra a Biblioteca Nacional do Brasil tem apenas três exemplares, dos anos 50.
Nenhum dos seus livros faz parte do espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.

Para que tenham ideia do que falo apresento-lhes algumas imagens da sua obra.

domingo, 4 de janeiro de 2009

A Romã e o Dia de Reis

É tradição portuguesa comer romã no Dia de Reis.

Diz a tradição que, quem o fizer, terá abundância todo o ano.

Em tempo de crise este conselho é mesmo de aproveitar. Mas como em tudo existem regras de que já falaremos.
A romã é, como é sabido, o fruto da romãzeira, o seu nome científico é Punica granatum L. e pertence á família das Punicaceae.
A árvore que dá este fruto é nativa da região que vai desde o Irão ao norte da Índia e aos Himalaias. Passou depois a ser cultivada na Índia central e do sul, no século I e mais tarde na região Asiática do Mediterrâneo, na Europa e em África.
No Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de José Pedro Machado, que eu muito estimo, diz que vem do latim «romana« (mala), «maçã romana» e que a palavra romãa já era usada antes de 1377. No meu atrevimento de ignorante, acreditaria mais que vem da palavra árabe «rumman», que é mencionada no Corão várias vezes.
É que a etimologia analisada nas outras línguas nada tem a ver com a nossa. Os ingleses chamam-se “pomegranate”. Em latim clássico o fruto era conhecido por malum punicum ou malum granatum. A palavra malum significa maçã e granatum deriva de granum “grão” com o significado de muitos grãos. Também o nome desta fruta, nas outras línguas ocidentais, deriva de adaptações de malum granatum, como por exemplo «grenade» em francês ou «melagrana» em italiano, sucessor directo do latim milgroym e ainda «granada» em espanhol.
A palavra «rumman» continua a ser usada nos países arábes e encontramo-la em receitas como a sopa iraquiana de romã (Shorbat Rumman) ou no sumo de romã, que se pode beber na rua, em vários países arábes, como em Marrocos, onde tem o nome de «Asseer Del Rumman».

A romã foi sempre considerada um símbolo de fertilidade que se devia à grande quantidade de sementes que existem na fruta e à forma harmoniosa como elas se dispõem na polpa do fruto. É esse sentido que é atribuído à romã nos desenhos das colchas de Castelo Branco que, como sabem, tiveram as suas origens no Oriente. São de inspiração indo-portuguesa, existem vários tipos e é no modelo popular, ou nas colchas de noivado, que se reproduz mais frequentemente a romã.

Mas o fruto ganhou outros significados relacionados com o casamento e o amor. Com o tempo passou também a atribui-se-lhe um sentido de abundância que passou a englobar a prosperidade e a riqueza. O povo, como o seu sentido prático, diz que no «Dia de Reis deitam-se três bagos de romã no lume para o ter aceso, três bagos na caixa do pão e três no bolso do dinheiro para ter dinheiro e pão (Teófilo Braga, em «O povo Português suas crenças e costumes»).


Mas o costume que eu recordo desde pequenina, na Covilhã, era o de comermos romã no dia de Reis, para termos fartura. Mas para isso era necessário guardar a coroa da romã, juntamente com uma moeda atada, numa gaveta. No ano seguinte, depois dos Reis, dava-se a moeda a um pobre e repetia-se o ciclo. Na altura era uma moeda de um ou dois tostões, já não me lembro bem. Hoje não sei a que deve corresponder.
Em Portalegre existia também esse costume e encontrei também referência ao mesmo em Castelo de Vide, onde é tradição pelo dia de Reis comer uma romã. Aí primeiro comem-se cinco grãos dizendo: "Em louvor dos Santos Reis", e pede-se um desejo que não pode ser revelado. Daqui concluo que pelo menos nos distritos de Castelo Branco e no de Portalegre se associava a romã ao Dia de Reis, mas é possível que o mesmo se passe noutros lugares.

Em minha casa comia-se a romã em salada, com açúcar, canela e um fio de vinho do Porto. Mastigavam-se as sementes e saboreava-se o suco. Algumas pessoas engoliam as sementes, outras deitavam-as fora. Mas estava cumprido o ritual.

Para quem não esteja familiarizado como fruto devo dizer que a melhor maneira de o descascar é cortar a casca finamente em gomos, como uma laranja. Depois separam-se os gomos e retira-se a pele divisória.
Para quem não goste de comer as grainhas pode fazer sumo. A maneira mais prática de extrair o sumo é cortar a romã ao meio e espremê-la no espremedor de laranjas. Pode também amassar-se bem a romã inteira no chão ou numa pedra, depois fazer um corte e espremer o suco. Se não lhes agradar qualquer destes métodos, ainda têm outra alternativa. podem pôr os bagos num passador, esmagar as sementes e extrair o sumo. Este pode beber-se ou fazer geleia.
É que para além de ser muito agradável são-lhe atribuída imensas propriedades fitoterapêuticas. Em primeiro lugar é anti-oxidante, o que leva a crer que tem um efeito benéfico como protector vascular, por reduzir o colesterol LDL (ou mau colesterol). Para além disso são lhe atribuídas outras virtudes como anti-envelhecimento e efeitos neuroprotectores na Doença de Alzheimer. Passo por cima de alguns dos seus mencionados atributos mas não posso deixar de mencionar um estudo em que foi demonstrado efeito antibacteriano, sobre estirpes de Staphylococcus aureus de origem humana, em que o seu efeito antibacteriano foi superior ao de alguns antibióticos testados. Interessante.
Mas o post de hoje era sobre o Dia de Reis. Não se esqueçam de comer romã. Depois não digam que eu não avisei.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Objecto Mistério Nº 4- Resposta: Raspador de manteiga

A apresentação da manteiga à mesa foi sempre mote para uma manifestação de requinte.


A manteigueira, o objecto mais usual para a sua apresentação, foi modificando as suas formas ao longo dos séculos.
No século XVIII a manteiga era uma raridade e só surgia em mesas ricas, habitualmente servida em manteigueiras de prata. A forma mais comum era em concha, mas outras foram utilizadas. Depois surgiram manteigueiras em porcelana ou em vidro, com formas e dimensões variadas.
A manteigueira individual de pequenas dimensões foi também usada durante o século XX.

Mas o uso de objectos que a permitiam moldar e dar-lhe formas variáveis levou à sua apresentação em pratinhos. Deste modo a manteiga era valorizada pela sua forma e não pelo recipiente que a continha.

E assim a manteiga surgia na mesa com a forma de flor ou outra. Mas a apresentação mais divulgada foi a de bola raiada.
Era feita com uma pequena espátula com sulcos ou com uma argola de bordo ligeiramente cortante e recortado.
Em Portugal é conhecida como «raspador de manteiga», designação que fica muito aquém do francês «cocquilleur à beurre» ou do inglês «butter curler», que nos dão imediatamente a ideia do que se consegue com o objecto. Se eu pudesse inventar um nome chamava-lhe encaracolador de manteiga e este problema ficava resolvido.

Toda esta conversa não tem outro fim do que introduzir um tema que de outro modo não conseguiria justificar neste blog: o Bazar de S. Paulo fechou.
Esta loja situava-se na Rua de S. Paulo, nº 49, em Lisboa e existia há cerca de 120 anos.
O último proprietário, o sr. Domingos, trabalhou na loja durante 12 anos. Há tanto tempo como eu vivo na zona, o que me fazia pensar que ele estava lá desde sempre. Mas antes dele trabalhou lá o sr. Joaquim Matos durante quase 50 anos. Desconheço quem o antecedeu e só o descobri num site sobre lojas antigas num projecto fotográfico de Luísa Ferreira (1994-2001).

Quando vim morar para aqui não sabia o nome da loja e chamava-lhe o «Tem tudo». Dei-lhe este nome porque num pequeno espaço e usando apenas um armazém como retaguarda, tinha realmente tudo o que necessitamos em casa.

Quando há alguns meses soube que ia fechar pedi-lhe para me deixar fotografar a loja. Infelizmente deixei para o último dia em que a loja estava já muito vazia. Ainda assim mantinham-se nas prateleiras as caixas de cartão com o objecto exemplo, fixo com cordel na face anterior.
Ainda lhe comprei algumas coisas de cozinha. Quando vi este raspador de manteiga disse-lhe que queria um.
A caixa estava cheia e respondeu-me: «Nunca soube para que isso servia. Por isso é que nunca os vendi».
Se a loja ainda estivesse aberta eu sei que ele ia ter alguns novos clientes.
Fechou no dia 23 de Dezembro, como aconteceu nos últimos tempos com muitas das antigas e interessantes lojas da Rua de S. Paulo, que a tornavam tão castiça. Senti pena.