quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A materialização do Abade de Priscos

Com a publicação do livro «A vida e as receitas do Abade de Priscos» acercamo-nos finalmente de uma figura vaga e indefinida que apenas associávamos ao pudim de Abade de Priscos.
Pela mão de Mário Vilhena da Cunha, seu descendente e colector do espólio remanescente e de Fortunato da Câmara, cujo interesse pelo tema já havia sido revelado na sua obra anterior, resultou um trabalho muito interessante e raro na nossa escrita sobre a história da alimentação no nosso país.
Fruto de uma investigação rigorosa, o livro faz-nos percorrer a vivência deste homem surpreendente, Manuel Joaquim Machado Rebelo, que a par da sua actividade religiosa se interessou por culinária de tal modo que se tornou uma referência nos importantes banquetes que eram realizados na região Norte. Chamado para elaborar importantes almoços e jantares, laicos ou ligados à Diocese de Braga. Foi também a ele que recorreram quando o rei D. Luís e a família real visitaram o norte do país em 1887.
Os seus menus, escritos em francês, ao gosto da época em nada se distinguiam dos da Casa Real. O Padre Machado Rebelo estava ao nível dos melhores cozinheiros da época. Conviveu com alguns deles, como João da Matta o mais famoso do seu tempo e ele próprio autor de um livro de receitas. Mas também trocou correspondência com outros como o cozinheiro Silva, que dirigia o afamado restaurante Club, em Lisboa.
Abade de Priscos com a família
Embora não tenha sido encontrado um caderno de receitas completo, como seria desejável, alguns pequenos livros, apontamentos, notas, planos de preparação e menus impressos permitiram aos autores coligir uma importante informação sobre a sua actividade e os seus conhecimentos. São igualmente publicadas algumas receitas dispersas, a par de informações orais fornecidas por descendentes da familiar que o acompanhou em vida.
Uma das formas usadas para o famoso pudim
Nos seus múltiplos menus, infelizmente impressos a sépia perdendo-se a beleza da cor, é visível a influência da cozinha francesa, possivelmente de um dos maiores cozinheiros franceses, Urbain Dubois, cujos livros estavam presentes no seu espólio.
Vale a pena ler o livro atentamente, talvez já não tanto pelas receitas porque tanto ansiávamos porque os tempos mudaram e os gostos também, mas pela materialização de uma figura importante na história da culinária portuguesa, desabrochado numa pequena terra da província, Priscos, que só conhecemos porque permanece até hoje o pudim criado ou adaptado por si. Porque é a criação ou a interpretação própria que faz um grande cozinheiro.
Uma das receitas e á direita um dos pratos de serviço com a sua identificação
Como disse o abade quando lhe pediram as suas receitas e que recusou com o argumento de que era impossível dar também: «os dedos das minha mãos e o paladar da minha língua». Tinha nele as características de um artista na culinária que não se aprende nas escolas, nem adquirindo o título de «chef», porque é inato e só pode ser desenvolvido.
Não temos muitas destas pessoas no nosso país, por isso é importante uma obra que recupera estas histórias e, no caso concreto, materializa uma figura que alguns pensavam não ter existido.

Nota: Todas as imagens foram extraídas do livro.