quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O Licor de Raspail

Há certos nomes que conhecemos mas sobre os quais temos uma ideia nebulosa. É o caso do Licor de Raspail.
A história é interessante, pelo menos para mim, porque mete um médico e um licorista. Pelo meio entra um português, como em todas as boas histórias.

Tenho percebido que é mais fácil detectar uma pista para a origem farmacêutica dos licores do que descobrir a origem conventual. Este é apenas mais um desses casos.
Conhecido também por Elixir Raspail, a fórmula inicial deve-se a um médico François-Vincent Raspail (1794-1878) que teve um campo de acção vasto, como biologista e estudioso de química orgânica e que em muito contribuiu para o desenvolvimento da ciência no século XIX. Foi um precursor da teoria celular e revelou-se um ecologista «avant la lettre» ao lutar contra a poluição industrial.
Escreveu um livro intitulado «Nouveau système de physiologie végètale et de botanique, fondé sur les méthodes d'observation, qui ont été développées dans le nouveau système de chimie organique…», publicado em Paris por J. B. Baillière, em 1837. A partir de 1845 publicou «Manuel-annuaire de la santé ou Médecine et pharmacie domestiques...,» que foi reeditado como almanaque e que se destinava à população em geral. Nessa obra apresentava um licor higiénico para ser tomado à sobremesa e que tinha fins medicinais.
Um francês chamado Jean-Baptiste Combier (1809-1871) que tinha uma confeitaria em Saumur desde 1834, abriu uma destilaria em 1848 onde começou a produzir um licor aplicando a receita de Raspail. Decide no entanto alterá-la, tornando-a mais doce e agradável.
O licor é um sucesso e Raspail felicita-o por isso. Contudo posteriormente Raspail apercebe-se das modificações e ele, bem como os seus descendentes, põem um processo a Combier que se vê obrigado a comercializar o seu licor com o nome de «Elixir Combier». Esta alteração de nome em nada modifica o sucesso de Combier, mas extingue a produção comercial do Licor de Raspail.
Em Portugal este licor foi comercializado pela firma Francisco Morais & Cª, em 1920. Estes comerciantes estavam estabelecidos na Rua da Vitória, nº 42, 2º, em Lisboa, quando registaram a sua marca. O rótulo da bebida surgia com o nome «Raspail» seguido de «Sa liqueur de dessert crée en 1847» e as indicações «1847-Lisboa-Portugal-1914», dando a entender que fora essa a data da sua introdução no noso país. O nome da empresa por extenso e em abreviatura «FM & C.» indicava que os próprios o produziam. No ano seguinte os mesmos registaram um Triple Sec designado «Curaçao Raspail».
Antes porém desta comercialização um outro nome surgiu associado a este licor: o de João Daniel dos Santos, também conhecido por João Daniel Sines por ter nascido nessa localidade.
Tal como Raspail, que teve um papel político importante, foi um combatente contra o miguelismo tendo estado preso. Nesse período estudou a medicina de Raspail e tornou-se seu seguidor. Após a saída da prisão fundou a Sociedade Humanitária Raspalhista, que teve ação durante as  epidemias de cólera, em 1856 e de febre-amarela, em 1857. Embora sem curso de Medicina transformou-se num médico popular e produziu o «Licor de Raspail» de acordo com a receita inicial, com cânfora. A cânfora, que Raspail chegou a exprimentar em si próprio em 1827, revelar-se-ia mais tarde prejudicial. Bem andou Combier quando a retirou e a substituíu por cascas de laranja.

4 comentários:

Anónimo disse...

Caros amigos, só agora vi este vosso blog. Acerca do licor de Raspail, tenho dados comprovativos em como foi produzido na Marinha Grande, pelo menos desde 1908 pela firma "Antunes, Carvalho & Companhia". Aliás, foi com esse licor e com o famoso licor de leite de raízes marinhenses que esta firma concorreu à Exposição do Rio de Janeiro de 1908.
De qualquer modo vou referir o vosso trabalho num estudo que estou a acabar, relativo à participação da Marinha Grande nas Exposições Universais e Nacionais.
Cordiais cumprimentos,
Luís Neto

Ana Marques Pereira disse...

Luís Neto,
Agradeço a sua informação e penso que é provável qe houvesse mais fabricantes deste licor em Portugal, nessa época em que os registos eram escassos. Gostaria de ter acesso ao seu trabalho logo que esteja pronto.
Melhores cumprimentos

Unknown disse...

No Jornal do Povo de 4 de Janeiro de 1851, Camilo Castelo Branco, sob o pseudónimo de Anastácio das Lombrigas, dá o seguinte conselho a um cantor do Teatro de S. João:
"Há ali uma voz cavernosa que pode melhorar-se com xarope de avenca. Por consequência, o sr. Lombardi pode afinar aquela laringe, se não com o Raspail, ao menos com uma boa farmacopeia."

Pedro Couto Soares

Ana Marques Pereira disse...

Pedro Couto-Soares,
Agradeço a sua interessante afirmação que desconhecia. Cumprimentos