sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O livro de Cozinha de Apício

No próximo dia 12 de Novembro vai dar-se o lançamento do «Livro de Cozinha de Apício». Traduzido, interpretado e com comentários da minha amiga Inês de Ornellas e Castro traz a lume uma reedição da sua importante obra.
Com o subtítulo «Breviário do gosto imperial» remete-nos para a maior colectanêa de receitas das Roma clássica: De re coquinaria. As receitas são atribuídas a Apicius, mais provavelmente Gavius Marcus Apicius que viveu durante o reinado de Tibério, no século I. A versão inicial terá sido aumentada até ao século IV, tornando-se numa fonte abrangente sobre a cozinha romana com cerca de 500 receitas.
Tornou-se famoso como manuscrito até à data da primeira impressão em 1498, em Milão. Durante o século XVI foi publicado mais seis vezes. Depois apenas seria publicada em 1705 em Londres, por Martinus Lister, numa pequena edição de 120 exemplares.
 Nos séculos seguintes várias edições se seguiram. A primeira edição em língua portuguesa, da autoria de Inês de Ornellas e Castro surgiu em 1997. 
Aqui está novamente, seguramente com mais informação, uma obra de grande utilidade para compreendermos e nos admirarmos com o requinte que a cozinha romana já tinha atingido nessa época.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A Garganta de Freira

Com esta designação, que nos remete para o universo conventual, surge-nos um doce hoje considerado regional na Covilhã, na ausência de origem comprovada numa comunidade religiosa. A sua divulgação deu-se na antiga confeitaria “A Lisbonense”, fundada num recanto do Largo do Pelourinho em 1912 por Francisco Muñoz Gomes (Paco), um espanhol, que tendo vindo de Lisboa para aí foi viver e onde veio a falecer em 1956.
Nela trabalhou o pasteleiro Joaquim Duarte de Oliveira que foi o responsável pela grande variedade de doçaria, tão apreciada na cidade e sobre a qual já anteriormente falei.

A Lisbonense à esquerda e o  Montiel à direita
Após a morte do ”espanhol”, como era conhecido o Paco, a propriedade da confeitaria passou para Artur Campos, dono do Montalto e de outras unidades hoteleiras. Ao balcão esteve sempre o sr. José Correia que, em 1969, passou a fazer parte da nova sociedade juntamente com o pasteleiro já referido.
Após o encerramento da pastelaria «A Lisbonense» os bolos que haviam adquirido fama passaram a ser feitos noutras pastelarias, como é o caso do Montiel, onde adquiri estas gargantas de freira.
A garganta de freira é um doce em forma de canudo, feito com massa de hóstia e recheado com fios de ovos.
O Montiel junto ao autocarro em fotografia existente no interior do estabelecimento.
Nada tem a ver com outro doce famoso da Covilhã, o «órgão», em que os canudos são feitos com massa, recheados com doce de ovos e encimados (porque se apresentam ao alto, agrupados) com fios de ovos. Sobre essa raridade, demasiada trabalhosa para ser feita nos dias de hoje, falarei outra oportunidade.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A refeição do soldado

Um momento de repouso permitiu aos dois soldados tomarem uma pequena refeição. Sobre um bloco de pedra um pão (uma carcaça) duas latas de sardinhas em conserva e uma garrafa de cerveja. Armas e sacos postos de lado nada nos informa sobre o local e a função que estão a executar.
É também omissa a data. Como único elemento identificador o rótulo da garrafa de cerveja Sagres, apenas parcialmente visível, que nos informa tratar-se de uma garrafa da década de 1970.
Se assim não fosse atribuiria talvez à foto uma data mais antiga, embora a forma de abertura da lata nos situem também já numa década mais avançada. E digo mais avançada em relação ao documento que a acompanhava e que é anterior. Data de 1937 e é um pequeno postal-convite enviado por correio e ainda com o selo e carimbo de Coimbra de 18 de maio de 1937. Com o título «Notícias farmacêutica» convida o endereçado e a sua família a assistirem a uma conferência sobre «A arma química e a futura guerra». 
Posters da Wikimedia
Não podemos saber o que foi dito mas haveria seguramente uma referência à mostarda nitrogenada que foi usada como gás mostarda na primeira Guerra Mundial. Muitas vítimas foram atingidas por esse produto letal e extremamente vesicante que provocava lesões cutâneas e pulmonares a quem o inalava. A sua disseminação pelo ar podia ser insidiosa e como cheirava a alho vários posters de alerta foram divulgados pela tropa.
Imagem tirada da internet
Percebeu-se depois que este produto atacava predominantemente a medula óssea e o sistema linfático, locais de formação e armazenamento das células sanguíneas. Por esse facto passou a ser usado em leucemia e em doenças linfoproliferativas. A Doença ou Linfoma de Hodgkin sofreu o seu grande revez e a maior parte dos doentes começaram a ficar curados. Hoje já não se usa mas este foi o primeiro grande avanço em quimioterapia.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Objecto Mistério Nº 48. Resposta: Escalfeta para ovos

Nesta resposta limito-me a seguir a informação dada pelo fabricante, a fábrica de alumínios Dália, que na cinta em papel assim a denomina. Na verdade a palavra «escalfeta» não se encontra dicionarizada com este sentido.
A palavra correcta devia ser «escalfador». Contudo se consultarmos os dicionários encontramos:
ESCALFAR (do lat. excalfacere) - Aquecer (água) no escalfador. || Escalfar ovos 1. passá-los por água muito quente: «Se este prato houver de levar gemas de ovos, escalfem-se à parte em uma panela, e ponham-se por cima do picado» (Domingos Rodrigues, Arte de Cozinha, 1693).
Escalfador múltiplo. Imagem tiradada internet
Quanto à palavra ESCALFADOR não se encontra no Bluteau (1712-1723) mas vamos encontrá-la no Moraes (1789) definida como um vaso em que se traz e se conserva a água quente por exemplo para o chá. Na realidade esta definição não está certa porque se refere à «urna para chá» que se distingue do «samovar» na forma, mas sobretudo por não ter uma fonte de calor própria.
Em 1937 Cândido de Figueiredo repete a definição de escalfar anteriormente apresentada, acrescentando que na província alentejana é o mesmo que esfalfar.
Escalfador de ovos.
Podíamos continuar a falar de escalfadores de ovos mas isso levar-nos-ia obrigatoriamente a usar palavras em inglês uma vez que não se compara o apreço que esta forma de tratar os ovos têm nesse país, sobretudo se o compararmos com o nosso. Em Portugal não se comem ovos escalfados ao pequeno-almoço, como fazem os ingleses e os franceses. Por isso pouca falta nos fazem os egg-cookers ou os egg coddlers que raramente se encontram no nosso país.

Já apresentei contudo um interessante exemplar de escalfador de ovos, pelo que evito repetir-me. Ver escalfador de ovos.  
Desenho inédito de Rosário Felix para o meu próximo livro.
Os ovos escalfados entre nós comem-se na sopa (de tomate p. ex.), nas açordas, nos pratos de ervilhas ou de favas. São sobretudo cozinhados no líquido do prato e portanto dispensamos esses belos utensílios mais sofisticados.
Voltando ao objecto mistério devo confessar que me atrai esta designação «escalfeta» que  me faz lembar esse objecto também entretanto esquecido usado nas Beiras no tempo frio para colocar dentro dele as brasas e aquecer os pés na grelha superior por vezes com um rebordo de madeira protegendo os sapatos. Mais antigas ainda são as pequenas escalfetas para aquecer as mãos, ainda mais desconhecidas.

Resumindo, eu que sou uma ignorante atrevo-me a dizer que esta alternativa de escalfeta ao escalfador até não está nada mal vista. E já agora se alguém conhece esta expressão, que até pode ser regional, gostava que desse a sua opinião.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Objecto Mistério Nº 48

O utensílio que hoje apresento como desafio é uma pequena caçarola com tampa em alumínio.
Tem pequenas dimensões, cerca de 9,5 cm de diâmetro e um cabo esmaltado com 13 cm que, a fotografia tirada demasiado próxima, deformou um pouco.

Por sorte, manteve a tira de papel com que era vendida e que facilita a identificação, mas que eu escondi ou perdia-se o mistério.

As perguntas são:

1 -  Para que servia?
2 -  Como se designava?

domingo, 4 de outubro de 2015

Pensamento sobre Cebolas

Um molho saloio de cebolas
Foi um presente de cebolas que recebi, vindas directamente da quinta, que me fez pensar na sua designação. De pele brilhante da cor do sol, apresentavam-se em molho e vinham amarradas pelos pés, ramas ou palhas (só às vezes nos apercebemos da riqueza da língua portuguesa). Perguntei como se chamava aquele arranjo. Não sabiam mas talvez «molho saloio». Achei bem porque são provenientes da zona de Loures, uma região que foi habitada pelos árabes expulsos da cidade de Lisboa onde se dedicaram à agricultura.
Réstias de alhos e cebolas
Sabia que não era uma «réstia», designação que deriva da corda de junco entrançado, e daí o nome ter sido adoptado para designar um conjunto de cebolas ou alhos presos pela sua rama ou palha entrelaçadas. O sábio padre Rafael Bluteau, no século XVIII, designava por «cabo» um conjunto de legumes (cebolas, alhos) entrançados que compunham a réstia. Mas estas não estavam entrançadas e muito menos entrelaçadas, não constituindo uma «trança». Que isto de entrelaçar cebolas tem a sua arte. Existiu mesmo uma actividade de enrestiar cebolas, cujos últimos artesão já quase desapareceram. Como tudo tem o seu saber que se ganha com a prática. Para se enrestiar cebolas é preciso agarrar na palha, isto é, nos caules secos e começar a fazer a réstia que deve ter 25 cebolas postas em fila, que se vão introduzindo uma por uma.
Atado de figos
Também não eram um «enfiada» uma vez que não eram passadas por um mesmo fio, o que  poderia corresponder possivelmente a um «atado», sobre o qual já falei a propósito de figos. 

A expressão «cambulha», que provém da palavra de origem árabe qambal para significar uma porção de coisas juntas, por exemplo figos, enchidos, ou mais facilmente compreensível as chaves, ligados por um fio ou argola, também não parecia aqui apropriada.

Ficamos então com o «molho saloio» e não ficamos mal.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

A Ilha dos Cozinheiros

Este livro infantil faz parte da colecção Manecas, o texto é de Henrique Marques Júnior (1881-1953) e os desenhos são da autoria do ilustrador José Félix (1908-1962). Foi publicado pela Romano Torres em 1939 e novamente em 1947.
O nome de Henrique Marques Júnior surge na Biblioteca Nacional em 226 registos, mas a grande maioria são traduções e adaptações. É possível que também este texto tenha sido uma adaptação dada a prevalência de nomes italianos das personagens. O pai do nosso herói, Cesaro, era o duque de San Severo que havia sido favorito do rei de Nápoles e sua irmã chamava-se Teresina.
A narrativa é muito interessante e mostra-nos Cesaro a sair de Itália para tentar ter êxito na vida a fim de evitar a entrada de sua irmã num convento, uma vez que após a morte de seu pai, em desgraça na corte, ficaram sem dinheiro.

A chegada a uma ilha diferente em que todos são cozinheiros e a própria rainha se chamava Marmita e se encontrava rodeada por uma corte com nomes de comestíveis e em que a moeda corrente eram filhós de ouro, introduz-nos num mundo mágico.
Ao apresentar-se à rainha, de forma adequada, não diz ter vindo de Nápoles mas da «Cidade do Macarrão». Esta afirmação levará a rainha que desconhece a massa a pedir-lhe para a executar.
Após grandes esforços consegue finalmente fazer um macarrão tão bom que a rainha o recompensa enchendo de presentes (filhós de ouro, preciosos tecidos e raros frutos) uma caravela para Cesaro poder partir com os seus acompanhantes. 
O nosso herói regressa rico a Nápoles, o que lhe permite adquirir o antigo palácio de seu pai, que oferece a sua irmã, juntamente com um dote para casar com o seu apaixonado.
Para si, que entretanto conseguira os mais elevados cargos, construiu um novo palácio a que deu o nome de «Palazzo Marmitoni» (Palácio dos Cozinheiros).
Uma história de encantar do tempo em que ainda havia cozinheiros. Hoje são todos chefes e deve ser por isso que se perdeu a magia e já não existem ilhas como esta.