quarta-feira, 4 de março de 2020

O cozinheiro e a galinheira

Pormenor de fotografia estereoscópica
Esta bela imagem é um pormenor de uma fotografia estereoscópica e o seu título, identificado na frente e no verso em várias línguas, é: «Uma vendedora de galinhas numa casa do bairro aristocrático de Braga».
Esta profissão tão antiga era designada galinheira e referia-se à pessoa que tratava das galinhas mas também a quem as vendia, funções que frequentemente se completavam. 
Pormenor de papel de Prateleira
Existiam também galinheiros, mas a referência a esta actividade masculina é mais rara.
A primeira vez que me deparei com esta profissão foi quando fiz a investigação para o livro Mesa Real e em que encontrei o nome de Josefa Rodrigues, que surgia frequentemente nos pagamentos da Casa Real. Foi galinheira da Ucharia Real, pelo menos desde 1759. Nessa data era já viúva de Manuel Pereira e morava na cidade de Lisboa, a Nossa Sª dos Remédios. Fornecia toda a variedade de criação onde se registavam, para além dos animais que hoje nos são familiares, as rolas, os adéns, as frambolas, os pássaros, as marrecas, canárias, perdigotos, galinholas, tordos, etc[1]. 
Vendedor de Patos. Porcelana de Vista Alegre
Esta tipo de venda fazia-se também em lugares públicos como nos mostra o requerimento de Maurícia Rosa da Conceição, galinheira, solicitando licença para um lugar de galinheira na Praça Nova da Figueira, em 1816[2].
Nas grandes cidades como em Lisboa, Porto, Coimbra e Braga, como aqui se demonstra, era sobretudo uma actividade ambulante. Em Lisboa a sua presença típica, em que os animais eram contidos em cestas cobertas com uma rede, transportadas à cabeça pelas vendedoras, durou até meados do século XX. Várias fotografias e gravuras imortalizaram essa profissão.
Figuras típicas de Lisboa. Pormenor de papel de prateleira
Percorriam as ruas chamando as suas clientes através de refrão que cantavam bem alto: «Éh galinhas! Merca frangos! Galinhas! Quem nas quer e com ovo?».
Durante muitos séculos o seu consumo tinha sobretudo um intuito medicinal. Destinavam-se à canja dos doentes e apenas em situações de festa as víamos surgir à mesa dos mais abastados. As galinhas eram caras, razão para que fizesse sentido o ditado: «Quando o pobre come galinha um dos dois está doente».
Transportadas por estas mulheres indefesas, que muitas vezes eram assaltadas durante o que se chamava atravessamento de galinhas, razão porque também foram chamadas Travessadeiras de galinhas.

Fotografia de criança mascarada de galinheira
Maria Antónia Lopes, no livro «Pobreza, assistência e controlo social em Coimbra (1750-1850)» descreve o seguinte passo das Actas da Câmara de Coimbra[3], datado de Dezembro de 1751: «e tendo chegado aos ouvidos deste Senado os Clamores do Povo em ordem a dar remedia concludente ao prejuízo, qui cauzavaõ as Travessadeiras das Gallinhas e mais aves de penna deste genero, naõ bastando tanta providencia dada nem penas impostas para impedir hum delito, que continuadamente se comette, abrangendo o prejuízo tambem a tantos pobres doentes, que ficcaõ sogeitos a inpiedade da ambiçaõ das vendedeiras deste genero».
Ficamos por aqui, neste desfiar de memórias e registos sobre as galinheiras, a propósito de uma foto em que salientámos o papel da vendedeira, mas não esqueçamos o do cozinheiro, o comprador, que quase afaga as aves para escolher a melhor para transformar na sua casa. Uma bela imagem perdida no tempo.




[1] Mesa Real. 2012. p. 108.
[2] ANTT. Ministério do Reino, mç. 878, proc. 50
[3] AHMC, Vereações, L.º 64.º, sessão de 11.12.1751.

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