sábado, 14 de abril de 2012

Um jarro de vinho espadeiro

Tenho um fascínio por cerâmica falante, isto é, por peças que têm palavras escritas. Qualquer que seja a palavra, ou melhor, os «dizeres», alarga o nosso universo e conseguimos obter mais informação de uma simples peça.

Vem isto a propósito de um jarro que comprei na Feira da Ladra com uma frase escrita no bordo superior. Não estava identificado com marca de fábrica e não correspondia a qualquer tipologia de fábricas portuguesas, que eu conhecesse.
Numa das faces tinha escrito “Restaurante Colón”. Esta designação, como sabem, corresponde ao português “Colombo” e identifica imediatamente, no país vizinho, Cristovão Colombo. O pior é que em Espanha existem um sem número de locais a que se atribuiu a designação Colón, desde praças e ruas a restaurantes e hotéis.
Era portanto impensável descobrir o seu local de origem. Tanto mais que uma dos mais conhecidos Restaurantes Colón se situa no Brasil, em São Salvador.
Em Lisboa, em 1911, foi também feito o pedido de registo de nome de um «Café Colon» por um galego de nome Alfredo Pinheiro Lourido, que tinha já um estabelecimento de Café na rua dos Correeiros, nº 125-129, em Lisboa, mas ignoro se chegou a existir.
Encontrei depois um famoso restaurante Colón, em Barcelona, de grandes dimensões de que lhes deixo a fotografia. Para a obter tive que encomendar de Espanha uma revista intitulada «La Saeta», publicada em Barcelona em 1901 e onde o mesmo vem reproduzido. Na vida nada é fácil, mas a imagem do mesmo valeu a pena. Só que, infelizmente, não me permitiu estabelecer alguma relação com esta peça cerâmica.
O jarro
de cor branca, com dourado no rebordo superior, bico e asa, apresenta pinturas de vários mariscos (lagosta, santola, mexilhão) numa alusão ao acompanhamento mais adequado à bebida nele servida. E a bebida era nem mais nem menos do que “vinho espadeiro”.
Vejamos primeiro o que é o vinho espadeiro e depois como eu lá cheguei. O espadeiro é uma casta de vinho verde que em Portugal cresce precisamente na região demarcada do vinho verde. No sul foi apenas cultivada na região de Carcavelos, que praticamente já não existe. Mas é sobretudo na Galiza e nas Astúrias que esta casta mais se cultiva, havendo mesmo quem considere que é essa a sua origem. Apresenta-se com uma cor rosada e um cheiro a framboesa e groselha.
E como cheguei eu à conclusão de que era um jarro para vinho espadeiro? É que este tem no bordo superior a seguinte frase. «Quece os peitos e as almas alumea» que, vim a descobrir, faz parte dos versos de Ramon Cabanillas (1876-1959), um dos mais apreciados poetas galegos, que se tornou famoso por defender a identidade cultural da Galiza. Na sua obra “Da terra asoballada”, publicada em 1917, encontra-se o seguinte poema de onde foi extraída a frase escrita neste jarro de vinho.
Diante dunha cunca de viño espadeiro

¡O espadeiro! ¡Asios mouros, cepas tortas
follas verdes, douradas e bermellas,
gala nas terras vivas de Castrelo,
nos Casteles de Ouviña e nas areas
de Tragove e Sisán, do mar de Arousa
e o Umia cristaíno nas ribeiras!

¡O espadeiro amante! ¡O viño doce!
¡A legría de mallas e espadelas,
compañeiro das bolas de pan quente
e as castañas asadas na lareira!

¡O espadeiro! ¡O risolio que loubaron
en namorantes páxinas sinxelas
os antigos abades do mosteiro
de Xan Daval, na vila cambadesa,
aqueles priores ledos e fidalgos
mestres na vida, na virtú e na cencia,
que sabían ¡ou tempos esquecidos!

canta-la misa, escorrenta-las meigas,
acoller e amparar orfos e probes,
rir coas rapazas, consella-las vellas,
darlle leito e xantar ós peligrinos,
pechar por fuero as portas da súa igrexa
á xusticia do Rei, cobra-los diesmos
e dispoñer vendimas e trasegas!

¡O espadeiro morno! ¡O roxo viño,
sangue do corazón da nosa terra,
que arrecende a mazáns e a rosas bravas,
quece os peitos e as almas alumea,
e sabe a bicos de mociña nova.

Não é interessante as cerâmicas falarem?.

Nota. Em negrito vão evidenciadas as frases transcritas para a caneca.

6 comentários:

Carlos Caria disse...

Ana continuam a ser deliciosas estas associações. Sabendo nós que os Galegos, proliferaram e foram quase donos e senhores da nossa restauração,- e não foram só tascas, tabernas e casas de pasto, veja-se Gambrinus, Solmar , Brilhante,etc etc - não seria de admirar que embora a produção do jarro possa ter origem Galega, seguramente serviu em algum resturante fino de Lisboa.

Afonso disse...

Adorei a pesquisa e toda a historia envolvente.

Ana Marques Pereira disse...

Carlos Caria e Afonso,
Obrigado pelso vossos comentários.
Um abraço

Anónimo disse...

Gosto da expressão cerâmica falante.
Bjs
C.

Gonçalo Seabra disse...

Engraçado como se pode fazer uma história tão interessante, a partir de uma peça que falava mas não muito...
Parabéns pela investigação. Gostei muito!
Beijinhos

Ana Marques Pereira disse...

Gonçalo.
Obrigado. Bem vindo ao blog. Espero que esteja tudo bem consigo.
Um bj