terça-feira, 17 de março de 2009

A cozinha de Julia Child

Como prometido, falo hoje na agradável surpresa que foi ver a cozinha de Julia Child (1912-2004), em exposição permanente, no Museu Nacional de História Americana, em Washington.

Esta visão de imagens do quotidiano em espaço museológico agrada-me imenso e integra-se no meu sonho de fazer um museu de objectos de uso comum de cozinha e de mesa. Claro que a evolução do espaço cozinha faz parte desse conceito. Apresentar as cozinhas por períodos ou por características de região inclui-se também nesse projecto.

Foi essa ideia que me fez visitar cozinhas em todo o país e me levou a escrever o livro «Cozinhas. Espaço e Arquitectura». As cozinhas populares e conventuais não foram ainda objecto de publicação, mas espero que o sejam dentro em breve.

Uma das características do Instituto Smithsonian é conservar a memória do quotidiano americano, para nós recente, mas antigo para americanos. Esta preocupação fez com que conservassem objectos que nós estupidamente deitamos fora, porque só apreciamos as antiguidades. No nosso orgulho balofo desperdiçamos todo um conjunto de memórias que vão desaparecendo diariamente. Refiro-me à presença, nalguns dos seus museus, de objectos não usuais para museus convencionais, quer a presença de espaços da vida quotidiana, como mercearias antigas, drogarias, farmácias, sapateiros, etc.

É dentro desta visão que podemos integrar a presença da cozinha de Julia Child, num museu.
O espaço em si é um sucesso. Pude constatar a presença de inúmeras pessoas, famílias completas, que a observavam em pormenor, com entusiasmo.
É este último aspecto que quero salientar. Admiração, espanto, prazer, contemplação, são sentimentos mais frequentemente observados em museus. O que é mais raro é conseguir desencadear entusiasmo. Para isso é preciso haver interactividade. E é isso que se passa naquele local. As pessoas mais velhas recordam-se daquelas imagens e as mais novas descobrem os objectos que conhecem e outros que nunca viram, porque já foram substituídos nas suas casas por outros mais modernos.
"Cozinha anterior de Julia Child"
Esta cozinha foi a nona e última cozinha do casal Child.

Nela predominam as cores azul turquesa e verde alface e foi desenhada pelo seu marido Paul Child em 1961.
Quando o casal se mudou para Cambridge, no Massachusetts, perceberam que era necessário alterar a cozinha inicial aí existente. Depois de várias cozinhas a que tiveram de se adaptar, era altura de terem uma cozinha adaptada às suas necessidades. Tanto ela como o marido sabiam o que queriam agora e o seu planeamento teve em conta as tendências do momento.
Trata-se de uma cozinha contínua, organizada em vários espaços e que durante sete anos entrou, através da televisão, pela casa de milhões de americanos como modelo.

É interessante notar que aquilo que se designa por “cozinha americana” é uma cozinha aberta, em comunicação com a sala e directamente com a zona de refeições. Seria contudo só a partir dos anos 70 que este tipo de cozinha se viria a divulgar nos Estados Unidos. Até essa época a evolução decorreu no sentido de introduzir o espaço para refeições dentro da própria cozinha.
Esta cozinha da Julia Child, que era moderna para a época, é uma prova desta afirmação. Como o são os filmes de então.

Como em tudo há uma excepção. Neste caso a de um arquitecto excepcional , um precursor, como foi Frank Lloyd Wright (1867-1959) que, em 1934, usou esse conceito na Casa Wiley e em 1936 na Casa Jacobs. O problema da ventilação, numa época ainda sem exaustores, resolveu-o construindo tectos altos e aberturas de ventilação no tecto. Mas noutros projectos posteriores a sua solução foi mais convencional.

Na cozinha de Julia Child, embora não muito grande, há espaços reservados para as diferentes funções. Até um espaço para a sua pequena biblioteca culinária.

Esta cozinha não serviu apenas para fins domésticos. Os últimos programas de televisão foram gravados nesse espaço da sua casa em Irving Street. No tecto foram colocados focos de luz que permitiam uma melhor iluminação do espaço. Esses programas, produzidos já nos anos 90, tinham nomes que traduziam essa realidade: In Julia’s Kitchen with Master Chefs, Baking with Julia e Julia and Jacques Cooking at Home.

Quando em 2001 passou a viver num local para idosos, decidiu oferecer a sua cozinha, que os americanos bem conheciam dos seus últimos programas de televisão, ao Museu Nacional de História Americana.
Abandonada à sua sorte teria sido destruída, que é o destino mais frequente das cozinhas na época da modernização. Integrada num espaço museológico ficou preservada, para meu deleite e dos que a visitam.

2 comentários:

Anónimo disse...

Fantástico!!!
Habitualmente não olhamos para a cozinha como "objecto" de museu mas depois de ler esta entrada parece óbvio que assim o seja.

Por cá, e e alguém se interessasse, teriamos, certamente, cozinhas para vários museus...

Ana Marques Pereira disse...

Temos em Portugal cozinhas fantásticas, em especial no Norte. Na região de Ponte de Lima existe mesmo orgulho na manutenção das cozinhas tradicionais. Nas várias casas senhoriais que visitei quase que havia uma competição de quem tinha a cozinha mais bonita e tradicional. Isto prova que há quem se interesse. Pena que sejam tão poucos.