O assunto surgiu naturalmente com o achado de uma caixa em lata de bolachas. Não sabia eu então que esta ia estabelecer uma ponte com Portugal.
Em primeiro lugar não é uma caixa qualquer. Apesar de não estar em bom estado, trata-se de uma caixa da primeira fábrica de bolachas do Brasil, que ainda por cima se caracterizava por ter a sua própria litografia e confeccionar não só os produtos alimentares mas também as respectivas embalagens. Foto da fábrica tirada do Ricardo's Blog
Falo da Fábrica de Biscoitos Leal, Santos & Cia, fundada em 1889. Por coincidência faz 120 anos no dia 20 de Outubro, que é também o meu dia de aniversário. Os brasileiros recordam-se dela como sendo a produtora das «bolachas Maria», mas na realidade foi muito mais que isso.
Pedro da Silva Nava (1903-1984), médico e escritor brasileiro, no livro “Balão Cativo” chamou às bolachas de Leal Santos «históricas» (p.281) e recordou as caixas azuis em que vinham acondicionadas. Não posso dizer se se referia a esta ou a outra lata, uma vez que devem ter mudado, no longo tempo de existência da fábrica.
O que sei é que a fábrica foi fundado no Rio Grande por um português, Francisco Marques Leal Pancada (1822-1903) que, juntamente com outros sócios, fundou no Rio Grande a Leal, Santos & Companhia. Um deles foi o Dr. Moisés Marcondes de Oliveira e Sá, médico brasileiro, licenciado nos Estados Unidos, que em 1890 foi viver para o Rio Grande do Sul, após ter casado em 1884 com a sua prima Zulmira Alves de Araújo Pancada, filha do referido Francisco Marques Leal Pancada e de sua mulher Maria Rosa Alves de Araújo. Mas em 1908 já estava afastado da actividade fabril.
A fábrica começou por produzir biscoitos e bolachas mas passou a fazer vários tipos de conservas de legumes, carne, etc. Em 1904 tinha já ganho 3 medalhas de Ouro na Exposição de S. Louis e em 1908 ganhou um Grande Prémio na Exposição do Rio de Janeiro. Apesar de a ter sido feita muita publicidade só encontrei a publicada na revista Careta, em 6 de Junho de 1908, com o título: “Biscoitos Santos Leal, do Rio Grande do Sul. São os mais saborosos, a delícia das crianças.
Mas não eram só as crianças gostavam dos biscoitos e bolachas. Em 1923 uma encomenda para o Exército explicitava: «os biscoitos Leal Santos ou Aymores, ditos de araruta, ditos de farinha de trigo de qualquer espécie, bolachinhas, etc».
Rua de São Clemente, Rio de Janeiro, 1908. Foto tirada do blog Saudades do Rio
As grandes dimensões da fábrica e o grande número de operários, que em 1918 totalizava 300 (200 homens e 100 mulheres), levaram ao aparecimento de vários conflitos laborais, que a tornaria em objecto de estudos sociais (1
Em Maio de 1919 houve uma paralisação de várias fábricas em Rio Grande que se estendeu, a 7 de Maio à secção de biscoitos da Fábrica Leal Santos e Cia, levando os operários desta a aderir ao movimento grevista (2)
No entanto tratava-se de uma fábrica progressista. A Leal Santos construiu 20 casas destinadas aos operários e um armazém onde eram vendidos mantimentos para os trabalhadores. Encontrei também referência a um grupo de teatro e a um grupo desportivo.
O jornal Rio Grande do Sul, Revista Ilustrada, de 1911, referia que nessa data existia na fábrica Leal Santos de biscoitos e bolachas, uma maioria de mulheres. Teriam começado nessa época as greves que levaram a que a fábrica Leal, Santos e Cia., com sede na Rua General Portinho, instituísse a jornada de trabalho de 8 horas uma maioria de mulheres, tendo sido a primeira a fazê-lo quando ainda era hábito trabalhar 14 horas diárias (3) .
Não sei até quando foram produzidas as bolachas e conservas, mas em 1947, a “Indústrias Reunidas Leal Santos S.a.” formou uma frota de barcos pesqueiros. Em 1968 associou-se ao Grupo Ipiranga e tornou-se na maior empresa de pescados brasileira. Em 1994, a Leal Santos foi comprada pelo grupo argentino Benvenuto que a vendeu ao grupo espanhol Actemsa, em 2006. Em 2010, a Leal Santos, juntou-se à espanhola Jealsa, para enlatar sardinhas e atuns. O atum será fornecido pela própria Leal Santos e a sardinha será importada do Marrocos, destinando-se os produtos a serem vendidos no Brasil. Uma longa evolução, que acaba como a história actual de todas as empresas de sucesso, com aquisições e fusões. O destino confirmava a afirmação que se pode ler na tampa da caixa do início do século XX «L’Union fait la force».
Bibliografia
1 - http://www.webartigos.com/articles/37595/1/Uma-breve-historia-da-industrializacao-na-cidade-do-Rio-Grande-apartir-da-segunda-metade-do-seculo-XX/pagina1.html#ixzz10eccEu9r
2 - Correio do Povo. Porto Alegre, 08/05/1919. p. 7.
3 - Edgar Rodrigues, 1977.