Refiro-me às lampreias de ovos que comemos pelo Natal, numa tradição relativamente recente, possivelmente apenas presente nas grandes cidades. Em Lisboa é um hábito que tem mais de um século. A Pastelaria Suíça, que sempre fez bons doces de ovos (que saudades das trouxas de ovos), vendia-as também por esta época.
Já no século
XIX era um presente requintado, tal como hoje. Uma mesa de doces fica enriquecida
com esta decorativa iguaria e há quem a não dispense, a par dos chamados doces
tradicionais.
Acontece que desde que escrevi o livro Rafael de Faca e Garfo nunca mais consegui olhar para uma lampreia doce sem me lembrar da história contada por Rafael Bordalo Pinheiro. Publicada em O Antonio Maria, em 30 de Dezembro de 1880, [1] em jeito de banda desenhada, Rafael conta-nos uma história de Natal extraordinária, intitulada “A viagem de uma lampreia no país do compadrio. Scenas do Natal.”
Esta lampreia é na realidade
uma lampreia de ovos comprada ao Cócó, isto é, na Confeitaria da rua
de S. Nicolau, que pertenceu à família Rosa Araújo. [2]
A dita lampreia era descrita como sendo feita de ovos de fio, dentes de cidrão, olhos de ginja e rabo de compota de pêra. Esta iguaria começou por ser oferecida pelo Comendador Possidónio ao professor de Belas Artes de seu filho, que por sua vez a foi oferecer a outro e, assim sucessivamente, passando pelas mãos de cerca de uma dúzia de pessoas, que se pretendiam influenciar. Pelo caminho, foi perdendo alguns atributos, gulosamente saboreados, como um olho de ginja, depois o outro, a pêra, etc., mas, em compensação, passou a ser embrulhada num guardanapo, num lenço de seda e finalmente embelezada com fitas, para acabar por fim como uma decoração de chapéu, feito pela chapeleira D. Cecília.
É com ele que uma dama da sociedade vai à missa ao Loreto, passeia pelo Chiado, e vai à noite ao Teatro D. Maria. No dia seguinte, a lampreia de ovos ainda foi vista no Passeio Público, mas ao chegar a casa a dama, que se fazia acompanhar por um jovem audaz, constata a ausência da mesma. O pretenso apaixonado havia comido finalmente a lampreia do Cócó! Num remate atrevido, envia um bilhete para casa da chapeleira, dizendo: “Gostei do chapéu. Aconselharia, que não carregassem tanto no cidrão”.[3]
Foi ao comer um dos olhos da lampreia deste Natal, uma meia cereja cristalizada, que o meu imaginário me levou para as memórias Bordalianas. Nunca mais vou conseguir olhar para uma lampreia doce sem me lembrar desta extensa e rocambolesca história.
Aqui ficam algumas imagens, mas não posso deixar de recordar uma afirmação do Vasco Santana, no filme Canção de Lisboa no papel de Vasquinho da Anatomia, onde dizia: “Chapéus há muitos…!”. Neste caso “Lampreias há muitas!”
[1] O Antonio
Maria. nº 83. 30 Dezembro. 1880.
[2]
O filho José
Gregório da Rosa Araújo (1840-1893) foi vereador da Câmara Municipal e, mais
tarde, seu Presidente. Exerceu as funções de Deputado e Par do Reino, para além
de outras. Contudo, a acção que mais o notabilizou foi a abertura da Avenida da
Liberdade.
[3]
Pereira, Ana Marques, Rafael de Faca e Garfo. Lisboa. Museu Bordalo
Pinheiro: 28-32.













